quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Direitos autorais: perigos adiante



 
Por ocasião da posse de Marta Suplicy no Ministério da Cultura, tanto a nova ministra como a Presidenta Dilma, nos respectivos discursos, manifestaram a importância do respeito ao direito autoral e à justa remuneração dos criadores por seu trabalho intelectual.
 
Isso deve ter deixado autores e editores terem bons sonhos. Pelas manifestação iniciais, os exageros e incongruências da proposta da finada administração Gil/Ferreira de modificação da Lei de Direito Autoral, e que haviam sido limados na proposta da Ministra Ana de Hollanda, pareciam estar definitivamente sepultados.
 
Mas, na mesma ocasião, tanto a Presidenta quanto a Ministra declararam a disposição de promover e ampliar os meios de expressão da chamada cultura digital, ponto importante para o desenvolvimento da criatividade e de acesso de amplas camadas aos bens culturais.
 
Os editores e escritores só prestaram atenção na parte dos discursos que lhes interessava. Os ativistas do digital – aqui entendido como acesso grátis ao conteúdo digital – trataram de se mobilizar e pressionar a nova ministra em torno de sua agenda.
 
Aqui preciso deixar bem claro algumas coisas.
 
Em primeiro lugar, sou totalmente favorável à ampliação de todos os acessos aos bens culturais através dos meios digitais. Considero os livros eletrônicos – que não farão desaparecer os livros impressos – um avanço na difusão da leitura.
 
Por outro lado, no entanto, e em diferentes ocasiões, já observei que essa ideia do “grátis” no ambiente digital é uma falácia. Os provedores de serviço são os grandes ganhadores econômicos e políticos dessa história. Para ler este post, os leitores tiveram que acessar a internet, que alguém pagou. O PublishNews tem seus custos de hospedagem e armazenamento, assim como eu em meu blog. A única coisa grátis aqui é meu trabalho, feito por que me possibilita difundir minhas observações sobre o mercado editorial.
 
No entanto, essa ideologia do grátis (aqui tida como uma visão destorcida e instrumentalizada da realidade) como sendo a grande virtude da Internet, ganha cada vez mais força. E é uma ideologia tentadora: ocultar os custos de acesso e de manutenção da infraestrutura digital, e quem investe e como ganha dinheiro com isso, é uma operação ideológica das mais bem sucedidas, provocando uma grande distorção na percepção dos usuários da Internet.
 
Tome-se, por exemplo, a história das licenças do Creative Commons, e a polêmica resultante da retirada do “selo” dessa licença do site do MinC.
 
A Lei de Direitos Autorais em vigor estabelece, explicitamente, que “Não serão objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: [...]IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais.” Ou seja, os documentos públicos, o conteúdo dos sites do governo e coisas do gênero simplesmente não estão protegidos. Podem, portanto, ser livremente reproduzidos, o que torna desnecessária o selo do Creative Commons para isso. A Ministra Ana de Hollanda tinha toda razão em retirar esse selo do site do MinC, até porque transferia para uma instituição de caráter privado o uso de conteúdos que, legalmente, não estavam sujeitos à proteção da Lei de Direitos Autorais.
 
Os autores, por sua vez, têm plena liberdade de permitir o uso de suas obras, segundo o artigo 30 da Lei: “No exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito”. A única cláusula restritiva a isso, segundo a legislação, é que o autor não pode abdicar dos seus direitos morais.
 
Evidentemente, para todos que vivem e trabalham sob a égide da Lei, esta tem pontos falhos e precisa ser modernizada, em vários aspectos, inclusive regulando pontos ausentes, como o das obras órfãs, por exemplo.
 
Mas daí a autorizar, sob os mais variados pretextos, a liberação compulsória e sem remuneração do uso de obras protegidas vai uma longa distância.
 
Para autores e editores, a grande questão da proteção de Direitos Autorais sempre esteve vinculada a alguns pontos específicos: 1) produção de cópias piratas, entendidas como tais as contrafações produzidas por pessoas ou empresas que usam o conteúdo protegido, omitindo ou falsificando sua origem, de modo a eludir o pagamento de direitos ou, no mínimo, o reconhecimento dos direitos morais dos autores. O caso mais comum desse tipo de infração é o do uso de traduções em novas edições com a falsificação do nome do tradutor. Denise Bottman, em seu blog Não Gosto de Plágio tem denunciado repetidos casos desse tipo.
 
O segundo tipo de infringência, muito mais comum, é o da reprodução através de meios mecânicos (ou eletrônicos) das obras, sem licença dos autores, embora não haja negação de autoria ou plágio. É a velha cópia reprográfica (a xerox, que a empresa detesta que seja assim identificada) e a mais recente reprodução por meios digitais.
 
Um terceiro ponto de reivindicação mais recente e já obedecida em vários países, é o da remuneração pelos empréstimos dos livros feitos por bibliotecas públicas. Nos países nórdicos, na Alemanha, no Canadá e em alguns outros países, as bibliotecas públicas recebem recursos específicos para remuneração de autores e editores pelo empréstimo de livros.
 
A solução universalmente aplicada pelo mercado internacional é o licenciamento. Cobra-se pelo uso dos trechos, seja lá por que meio for feita a reprodução.
 
No Brasil, entretanto, os editores há dez anos tem adotado uma atitude desastrosa, de perseguição criminal dos infringentes, sem abrir espaço para os licenciamentos, como era a proposta inicial da ABDR. Desde 2003 as novas direções da entidade se colocam pura e simplesmente na posição de repressoras, gerando imensa insatisfação, principalmente entre estudantes. Vide o recente caso do site Livros de Humanas e as repercussões que teve.
 
Essa atitude dos editores (e a ausência, na prática, dos autores nessa discussão, por desconhecimento, falta de representatividade de suas associações e falta de mobilização dos editores) criou um caldo de cultura que favorece em extremo as posições do pessoal do “conteúdo grátis”.
 
Essa dispersão de esforços, e uma atitude relaxada em relação ao problema podem levar a consequências complicadas. O projeto da nova Lei de Direitos Autorais será revisado pela equipe da nova ministra. E quem se movimenta são os órfãos do projeto Gil/Juca Ferreira.
 
Se autores e editores não se cuidarem, logo poderão se defrontar com o renascimento da proposta feitas pelo Ministério naquele momento, e, o que é pior, com o apoio e a mobilização da opinião pública desinformada e mobilizada contra a ganância das editoras.
 
É hora de acabar com a passividade, agir como verdadeiros representantes da indústria editorial e mobilizar os autores na defesa de seus direitos para garantir os meios de que o trabalho intelectual seja efetivamente remunerado e continue a mostrar a diversidade cultural e a bibliodiversidade da literatura e da ensaística brasileira.
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Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blogwww.oxisdoproblema.com.br
A coluna O X da questão traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, este espaço analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.