segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cultura popular


Biu Laboredo e a incrível arte de fazer brinquedos

Publicado em 04.09.2011, às 21h30

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Bonequeiro tinha 12 anos quando vendeu os primeiros brinquedos
Fotos: Nilton Villanova/ Divulgação
Breno Pires Do NE10
Severino tinha nove anos e não tinha brinquedos. Ao bater o olho num mané-gostoso que desfilava nas mãos de seu irmão mais velho, quis um igual. Para quem não conhece esse brinquedo tradicional, seja por ser muito novo, seja porque nunca lhe ensinaram o nome, é aquele boneco de madeira colorido que dá cambalhotas quando uma mão aperta as suas hastes. O caso é que Biu, menino pobre, da roça, da cidade de Bezerros, Agreste pernambucano, não tinha condições de comprar um desses. Então lançou-se na aventura de fazer um só para si.

Com disposição e tempo, na base do improviso, ele começou cortando na faca os pedaços de madeira. Arranjou dois pregos velhos e bateu. Para fazer a articulação do boneco, era preciso furar os braços, e o fez usando um espeto quente, que colocou no fogo até ficar vermelhinho. A fumaça quente subindo ao olho o fez chorar, mas não desistir, recorda o artesão Severino Gomes, 51 anos. “Foi meu primeiro brinquedo.”

Biu Laboredo, como se apresenta, vive de produzir ao infinito o mané-gostoso e o carrinho de madeira, ofício da sua vida. É um autêntico fazedor de brinquedos. “Eu vivo hoje através da brincadeira da minha infância”, reflete.

“A vida foi sempre assim, brincando e fazendo brinquedo”, diz Biu, que produz, junto com sua esposa, Lucineide, de 38 anos, e dois assistentes, no Núcleo de Produção Artesanal de Bezerros, uma média de 5.000 manés-gostosos por mês. Eles representam dois terços da receita mensal, que é completada com a venda de carrinhos de madeira e a produção de artigos de marcenaria, sobretudo para decoração de quartos infantis.



Para fabricar e vender tantos itens, Biu e equipe não brincam em serviço. “Eu trabalho 12, 13 horas por dia. Tem dias que eu saio daqui às 11 da noite, meia-noite”, diz. Ele tem sete clientes fixos, compradores da maioria da sua mercadoria — vendida também, em menor escala, a pessoas que visitam o núcleo. Com o dinheiro arrecadado, Biu diz que dá para viver bem. “Tem que ter paciência. Trabalhar, sempre trabalhar. Não pode passar uma semana sem trabalhar. Se trabalhar, graças a Deus, dá para viver bem”, afirma.

O bonequeiro vê em seu trabalho benefícios outros, não só econômicos. “O trabalho, quando é bom, ele é lucrativo e, além de ser lucrativo, é uma terapia. Quando se faz o que se gosta, vem também a recompensa na saúde da pessoa. Você está em casa, doente, está lá todo troncho, cheio de dor, então sai de casa, começa a trabalhar, esquece a doença. Trabalhar é uma beleza”, diz.

E, em meio ao trabalho, a diversão sempre aparece para Biu, que não perdeu o encanto pelo brinquedo de sua infância, mesmo sendo agora uma mercadoria. “Ainda hoje eu costumo brincar. Enquanto eu estou fazendo boneco eu estou brincando. Quando pega a ferramenta pra fazer o primeiro brinquedo, já começou a brincadeira”, conta.

Biu tinha 12 anos quando vendeu os primeiros brinquedos. Sua mãe ia para a feira vender outros produtos e levava junto a pequena produção de Biu, que não dispunha dos equipamentos apropriados para a confecção. “As ferramentas eram as facas da cozinha. Eu pegava escondido e ia trabalhar. Aprendi a fazer carrinho, mas não tinha um serrote. Meu sonho era ter um serrote”, diz ele, que encontrou uma solução. “Eu roubava escondido a serra de serrar osso do meu pai, que era açougueiro, e, enquanto ele ia para o sítio, eu ficava em casa serrando madeira, pra fazer os carrinhos.”

Algo bem diferente de seu sistema de produção atual. “Hoje tenho na ativa três circulares, um desempeno, uma serra de fita, duas serras de tico-tico; tenho furadeira manual, tenho furadeira de bancada, tenho serra circular manual. Fora outras ferramentas pequenas. Eu diria que 80% do que precisa numa marcenaria eu tenho”, enumera.
O artesão Biu já foi para a Feneart nos últimos dois anos, com um estande próprio, o Laboredo Artesanato. Ele faz seus produtos no Núcleo de Produção Artesanal de Bezerros, na Avenida Major Aprígio da Fonseca, 805, justo na fixa local da BR-232, no sentido de quem vem do litoral.



TRAJETÓRIA - Antes de abraçar em definitivo a confecção de brinquedos, no entanto, Biu viveu outras experiências. Aos 16 anos, foi para o Recife estudar. Concluiu o primário (4ª série) e trabalhou no comércio e na construção. Voltou depois para Bezerros, comprou um serrote e recomeçou a fazer brinquedos, mas não teve muito sucesso e tentou novamente o comércio no Recife. Não deu certo, e ele regressou a Bezerros aos 21 anos. “Comecei a fazer alguma coisa no comércio. Vendia utensílios domésticos, fazia brinquedos. Anos depois, comprei a primeira máquina e então faço brinquedos até hoje. Já faz uns 25 anos que eu trabalho com brinquedo”, diz.

A partir daí, o mané-gostoso virou praticamente um membro da família. “Ele está sempre em linha de frente. Não pode faltar em casa de jeito nenhum. É como se fosse o pão. Teve o mané-gostoso, tem o pão. Para você ter uma ideia, a minha decoração de casa é só mané-gostoso. Nos cantos das paredes, acho que até na cama tem mané-gostoso! Dorme fazendo, dorme sonhando que está fazendo mané-gostoso. Minha mulher uma vez disse que viu mané-gostoso andando pela casa. Aí eu disse: ‘isso aí já é fantasma’”, conta, com bom humor.

Curiosamente, os dois filhos de Biu preferem outro tipo de brinquedo: os jogos eletrônicos, que estão em alta entre toda a garotada. Eduardo, 10 anos, adora jogar no computador e diz fazer isso por “muitas horas”. Já a brincadeira com o mané-gostoso dura “poucas horas”. Diego, 16, também é mais chegado nos eletrônicos.

“Brincar de videogame, de jogo eletrônico, computador, essas coisas, para eles prestam, para mim não. Para mim, minha brincadeira era mais sadia. Mas tem que acompanhar o tempo, não é? Se agora, a inovação, todo mês surge um jogo diferente e as crianças gostam, tudo bem. Agora eu não concordo com isso. É uma loucura”, comenta Biu.

Mesmo torcendo o nariz, Biu respeita os novos brinquedos. Ele defende que a criança tem mesmo é que brincar. De preferência com brincadeiras livres e com brinquedos artesanais, que ele julga serem mais saudáveis e mais estimulantes à imaginação. Mas toda forma de brincadeira é válida. “Eu acho que a criança tem que brincar. Brincar é o ideal”, diz.

TRADIÇÃO - As brincadeiras modernas, que fascinam a garotada, não são uma ameaça aos brinquedos populares, na visão de Biu. Eles podem coexistir, até mesmo por um motivo interessante: diante da abundância das novidades (na visão dos mais velhos), o tradicional pode se tornar o novo no olhar dos pequenos.

“O brinquedo popular é uma tradição e, ao mesmo tempo, é uma novidade. Porque a criança está acostumada só com computador, videogame e carrinho eletrônico e já está um pouco enjoada. Então, quando chega na feira, que tem uma banca de brinquedo popular, vai em cima e quer levar porque é novidade para eles. Para eles, para alguns pais. Tem criança que não sabe o que é o mané-gostoso, e tem adulto que nunca viu. As crianças acham interessante para brincar”, analisa.

Biu Laboredo tem a convicção de que os brinquedos populares terão vida longa. “Tanto o brinquedo quanto a cultura continuam. O brinquedo popular é milenar; eu não conheço a origem, mas sei que é milenar. E ele vai prosseguir por muitos anos. A arte e o brinquedo popular”, profetiza.

“A vida tem que ser sempre uma brincadeira e a pessoa tem que nascer criança e morrer criança. E eu acho que eu vou ser sempre criança, porque cada brinquedo que eu faço dá vontade de brincar. Faço um caminhão, dá vontade de amarrar um cordão e sair correndo por aí, sair brincando com ele”, confidencia, aos risos, empolgado com a conversa.

Biu Laboredo, que não faz tantos planos para o futuro além de ver os filhos crescerem e gastar a sua nova cadeira de balanço até ficar velhinho, tem um desejo final.

“Se um dia eu morrer, no lugar de flor no caixão, que botem um mané-gostoso por cima, antes de fechar ele. Para chegar lá no céu junto. Se eu for pro céu também, né? Não sei se vou. Imagina um bocado de mané-gostoso acompanhando: será que vai ter jeito? [risos]. Eu quero assim, não quero ninguém chorando, mané-gostoso pras crianças que tiverem acompanhando... Pode botar um carro de som tocando Asa Branca, de Luiz Gonzaga, que é melhor que o pessoal chorando. (...) Mas eu não vou morrer, não, nunca. Enquanto tiver criança no mundo, eu não morro. Se eu morrer, quem vai fazer brinquedo para as crianças?”