segunda-feira, 25 de julho de 2011

Bibliotecário do rei

O bibliotecário do rei

Conheça Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que trouxe a biblioteca de dom João VI para o Brasil e se tornou um dos primeiros cronistas do Rio de Janeiro

Marcos Diego Nogueira

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A história é contada por vitoriosos – certamente pelos seus protagonistas e quase nunca por seus figurantes.
Na vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, quem foi motivo de relatos heróicos foi o futuro rei dom João VI e sua mulher, Carlota Joaquina. Mas outro personagem, um figurante, teve seu papel no rumo dos acontecimentos. Ele se chamava Luís Joaquim dos Santos Marrocos (1781-1838), era um mero bibliotecário, e também veio para o País devido à invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Sua missão, contudo, foi mais prosaica: Marrocos ficou encarregado de trazer para o Rio de Janeiro os 60 mil volumes da Biblioteca Real, orgulho da corte e retida no cais de Belém por três anos – na pressa, foram deixados para trás os livros e a prataria. Napoleão levou o que era de metal – deixou os papéis. Marrocos cuidou bem deles. Embora não tenha sido objeto de qualquer retrato, o bibliotecário gostava de escrever cartas e por meio de sua correspondência com a família, que ficou em Lisboa, fica-se conhecendo preciosos detalhes do cotidiano carioca no século XIX, agora recontados no livro “O Guardião dos Livros” (Casa da Palavra), da argentina radicada em Portugal Cristina Norton.

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Tema de um capítulo no best-seller “1808”, de Laurentino Gomes, Marrocos não era dado a grandes pensamentos em suas missivas. “O que diferencia suas cartas de outras desse período é que elas são depoimentos simplórios de uma pessoa comum dando informações aos familiares”, afirma Gomes. “Não são relatos diplomáticos sobre os passos dos reis como estamos acostumados.” Foi o autor de “1808” que presenteou Cristina Norton com uma transcrição das 186 cartas, editada em 1936. Elas tratam de assuntos cotidianos como a violência no Rio de Janeiro, a doença de dom João VI ou a compra de um escravo por 98 mil réis. O presente foi bem dado. Cristina diz ter se apaixonado pelas histórias contadas pelo personagem – e foi por isso que escreveu “O Guardião de Livros”. Para não conferir à obra um ar de compêndio escolar ou histórico, ela adicionou à trama um “pouco de sal e pimenta”: “Tudo o que se refere ao que Marrocos viveu é não ficção.Evidentemente, inventei certas coisas, já que não sei se ele as disse exatamente com aquelas palavras”, diz a autora. Ainda assim, passagens reais como a história do escravo comprado por Marrocos dão a impressão de serem fictícios e esse jogo só enriquece a obra.

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DESPEDIDA
Foto atual da Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, que no séc. XVIII abrigou a
coleção real. Acima, tela retratando a partida de dom JoãoVI para o Brasil
O escravo, que gostava de vigiar seu senhorio nos cochilos tirados por ele após o almoço, foi adquirido por Marrocos pouco depois da sua chegada ao Brasil. “Um aspecto interessante de sua personalidade é o seu processo de conversão”, diz Gomes. “Sua primeira correspondência trata o Rio com ódio, como um lugar que ele não suportava.” Aos poucos, contudo, foi se adaptando à vida da colônia até contar em uma carta três anos depois: “A aversão a este país é um grande erro de que há muito tempo me considero despido”. À época, o bibliotecário conheceu Anna Maria de São Thiago Souza, uma jovem de 22 anos com quem teve três filhos – e suas cartas exprimem o bom humor dos apaixonados. “Dez anos depois, Marrocos escreveu a última carta à família dizendo que Portugal era um atraso e o Brasil, o futuro”, diz Gomes. Marrocos apoiou a Independência do Brasil em 1822 e foi o escrivão da primeira Constituição brasileira. A despedida da condição de colônia custou aos bolsos de dom Pedro I a fortuna de dois milhões de libras esterlinas, mas um terço desse valor foi destinado à compra da Biblioteca Real, a mesma que havia sido transportada e se encontrava sob os cuidados de Marrocos. Foi esse tesouro bibliográfico que deu origem à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em cujo acervo se encontram raridades como a “Bíblia de Mogúncia”, a primeira a trazer a data, lugar de impressão e nome dos impressores, Fust e Schoeffer, ex-sócios de Gutenberg. Já os originais das cartas escritas pelo bibliotecário estão na Real Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Estranha coincidência: esse era o mesmo local que, no passado, abrigava os livros pelos quais Marrocos nutria tanta dedicação.
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