terça-feira, 27 de março de 2012

Vida Além do Direito


CORDELISTA ENCANTADO

O estalo pode acontecer a qualquer momento, basta surgir uma boa história. E que seja ali mesmo, na mesa de audiência: pelo inusitado do pedido, do contraditório inconsequente ou, ainda, da postura folclórica do réu.
Não parece fácil transformar episódios do cotidiano em textos criativos, com pitadas de elementos do mundo jurídico. Mas o juiz federal Marcos Mairton tira isso de letra. Da comarca de Quixadá, no interior cearense, produz relatos divertidos da experiência forense por meio de contos narrados em verso, os cordéis. Uma paixão.

Arte especial, inconfundível. “Uma das diferenças entre o cordelista e o repentista é que enquanto o repentista faz os versos na hora, de repente, conforme o tema do qual é incumbido pela platéia ou pelo patrocinador, o cordelista faz os seus versos em prazo maior, reservadamente, e depois os apresenta. Daí ser chamado também de poeta de gabinete”, explica Mairton, mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará.

Os prazos são implacáveis, sabem aqueles que vestem togas. E os cordelistas, assim como os zelosos operadores do Direito, não querem cair em mora. “Os bons cordelistas costumam ser rápidos e, embora não façam de imediato, conseguem escrever em versos na mesma velocidade que escreveriam as mesmas coisas em prosa”, diz.
É como um desafio a ser superado. Mas para alcançar tal nível de rapidez nas respostas, leva tempo. Hoje, aos 45 anos, o juiz relembra dos tempos de criança, quando participava, em Pirambu, bairro de Fortaleza, do ritual de malhação do Judas no Sábado de Aleluia. O pequeno Mairton, desde os oito anos, também fazia os seus testamentos para o mais famoso dos traidores, com as pequenas rimas tradicionais, para a alegria da família. “A lembrança mais antiga que tenho. Depois fiquei um bom período sem fazer nada parecido”, diz.
Porém, a ideia de fazer cordel acompanhava o estudante, o bacharel, o magistrado. Tinha vontade de criar, mas sentia dificuldade. Sempre atrelava os textos às paisagens rurais, às agruras dos homens do campo, longe do seu habitat naquele momento, em meio ao concreto da capital. “Chegou o momento que deu o estalo”. Sim, o estalo.
Hoje, Mairton já tem o jeito. A técnica deve respeitar as sextilhas e a métrica silábica de sete sílabas – que não correspondem às sete sílabas gramaticais – para cada verso. Sem maiores rebuscamentos, a linguagem torna-se acessível. “Fazer o simples é mais difícil”, atesta. E, com facilidade, o cordel entrou na vida do juiz federal.
Sentença cível, sentença criminal, despachos. Volta e meia, há um verso que deixa o processo mais leve. “Um dia, brincando, um advogado derrotado na lide disse que gostaria de recorrer em cordel”, recorda.
ESTELIONATO Um dos primeiros textos trata de uma sentença prolatada em 2002. Um caso real cuja decisão, em cordel, está nos autos do processo. Era o caso do marido que foi acusado de estelionato porque a mulher, que estava com câncer, comprou uma casa e um apartamento financiados para que o seguro pagasse a dívida quando ela morresse.
Assim começava a sentença:
Dos casos que até hoje
Tive o dever de julgar
Houve um que não esqueço
E que agora vou contar:
Foi numa ação criminal
Na Justiça Federal
Desta terra de Alencar.
Era o caso de um rapaz
Que estava sendo acusado
De ser estelionatário
Por sua mulher ter comprado
Casa e apartamento
Mas com seu falecimento
Ele é que foi premiado.

Além de ser publicada na revista da Associação dos Juízes Federais, a sentença ficou em segundo lugar em um concurso de poesia de cordel promovido pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), do qual participaram professores e alunos, e cujo tema era a Justiça.
Mas não carece ser tão real. A ficção é também amiga do cordelista, sagaz o suficiente para brincar com fatos corriqueiros do exercício da magistratura em textos fantásticos, mágicos, a exemplo do “O advogado, o Diabo e a Bengala Encantada”, que catapultou o magistrado à nova carreira, em 2005.
O cordel, publicado em forma de folheto pela Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte, foi adaptado para radionovela por universitários e depois virou objeto de estudo em uma tese de doutorado da Universidade Federal de Alagoas.
A partir daí, o prazer pela literatura só aumentou. São dez livros escritos, em cordel e em prosa. O Quilombo do Encantado, voltado para o público de 11 a 14 anos, está incluído no Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE 2012, do Ministério da Educação. Antes, o infantil Uma Aventura na Amazônia, de cinco a nove anos, já havia sido adotado em escolas públicas e privadas do Ceará e de Pernambuco como material paradidático.
O texto Uma confissão apaixonada ficou em sexto lugar no Prêmio Literário da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) em 2009, enquanto que Dois torcedores conquistou a segunda colocação no concurso de contos da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), no ano passado.
E de Quixadá para o mundo. O cordel Uma Aventura na Amazônia, de Marcos Mairton, foi um dos destaques do encontro “L’esprit, la lettre, l’image du «Cordel», expression populaire, culture savante?”, realizado em outubro de 2011 na cidade de Poitiers, na França.
Pesquisadores da literatura de cordel de Portugal, Brasil e do país anfitrião, discutiram temas como a oralidade, a transcrição escrita e as ilustrações por meio de xilogravuras.
O Uma Aventura na Amazônia ganhou espaço e citação no trabalho do professor Carlos Nogueira, da Universidade Nova de Lisboa: “Nature et environnement dans le Cordel”, ou Natureza e Ambiente na Literatura de Cordel, em português.
“Meu cordel foi citado como exemplo de poesia que é popular – porque próxima do povo – mantendo, por outro lado, o compromisso com o português padrão escrito”, registrou o juiz. “É ou não motivo para alegria a gente ver a literatura de cordel ganhar espaço mundo afora?”, completou.
CONGRESSO Todo o material pode ser consultado no blog Mundo Cordel, criado em 2007 por Marcos Mairton e onde estão publicados textos de outros cordelistas.
Três anos depois de ir ao ar, a iniciativa ganhou reconhecimento nacional. O diário eletrônico foi um dos agraciados na categoria Difusão com o Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel 2010 – Edição Patativa do Assaré, promovido pelo Ministério da Cultura. A ministra Ana de Hollanda, titular da Pasta, fez a entrega do certificado no último dia 7 de dezembro, em solenidade realizada em Fortaleza.
Mas sucesso pouco é bobagem e, em novembro do ano passado, a Biblioteca do Congresso Americano selecionou o site para inclusão no acervo histórico dos materiais da internet selecionados, referentes à literatura de cordel do Brasil.
O Brazil Cordel Literature Online nasceu graças à colaboração de um grupo de consultoria internacional composto por bibliotecários do Brasil e dos Estados Unidos colecionadores de cordéis, com o objetivo de identificar, preservar e tornar acessível a produção digital referente aos cordéis do Brasil.
DISTORCIDA Além de cordelista, Mairton se aventura na música. Canta e toca contrabaixo em uma banda de rock, mantida há anos com amigos: o Projeto Enxofre. Mais versátil, impossível. Virou, em algumas situações, uma atração.
“A aceitação é sempre muito boa no âmbito do meu tribunal. A dificuldade com a música é que – diferentemente da literatura – requer tempo para os ensaios. Como todos nós trabalhamos, temos que tirar do fim de semana”, conclui, desta vez, sem rimar.
Em 2009 o grupo conseguiu um patrocínio do Programa BNB de Cultura e gravou um cd com canções do próprio juiz e do economista Léo Carlos, seu parceiro musical. E lá está o magistrado, marcando o grave, no Rock Cordel, evento que anualmente acontece em Fortaleza. “É muita guitarra distorcida”, diz.