Zeca Baleiro
Cantor e Compositor - Colunista Mensal
A biblioteca do T-Rex
Ter uma "cultura literária" qualquer, por mais caótica e despretensiosa que
seja, no mínimo dá assunto ao cidadão
Tenho me esforçado para não me tornar um Tiranossauro Rex neste mundo
digital e conectado, e meu recente ingresso no Twitter, que tanto contestei
– ingresso ainda tímido, confesso –, é uma prova considerável do meu
esforço. Acontece que sou de uma era (é, nós, os analógicos, sempre falamos
num tom saudosista) em que as pessoas cultivavam a leitura, por bem ou por
mal. “Era” em que também os suportes que hoje são causadores da dispersão de
jovens e adolescentes, tão banais e ao alcance de qualquer criança, eram um
tosco esboço ainda – vide os primeiros games e programas de texto para
computadores.
Meus pais, professores interioranos, tinham uma pequena biblioteca que
fascinava a nós todos, os seis irmãos (sim, “Éramos Seis”). Apesar de ser o
mais preguiçoso dentre todos os pequenos leitores, ainda assim, se comparado
ao que leem hoje os miúdos escorados em pcs, laptops, tablets e smartphones,
o que li seria algo como uma pequena Biblioteca de Alexandria. Os títulos
variavam desde o “Almanaque do Biotônico Fontoura”, publicação que meu pai,
dono de farmácia além de professor, sempre recebia, até coleções de Jorge
Amado, José de Alencar e Machado de Assis. Clássicos universais, como “Crime
e Castigo”, que a minha irmã Lúcia leu aos 12 anos (hoje um fato improvável)
até best-sellers infanto-juvenis como “Meu Pé de Laranja-Lima” e “O Menino
do Dedo Verde” (sim, sim, “Primeiras Estórias”).
Aos 14 anos, o primeiro choque. O professor Furtado, um incendiário
professor de literatura, recomenda ler “O Estrangeiro” e “Memórias Póstumas
de Brás Cubas” de uma só tacada. A leitura daqueles livros me transformaria
para sempre, embora eu não tivesse as ferramentas intelectuais e afetivas
(?) necessárias para alcançá-los. Mas naquele momento entendi que havia
formas mais, digamos, “profundas” de pensar o mundo, ou no mínimo diferentes
das que eu conhecia até então. A partir daí, continuei a ler desordenada e
apaixonadamente tudo o que caía em minhas mãos – poesia brasileira, depois a
beatnik americana; romances regionalistas nordestinos, poesia concreta,
“geração mimeógrafo”, autores malditos, etc. Hoje, apesar de não chegar aos
pés do Mindlin (e isto não é um trocadilho), me orgulho de ter em meu
currículo (nem isto) um repertório curioso e diversificado.
Estas minhas divagações sobre leituras vêm a reboque de minha participação
no projeto Ilustre Leitor, que inaugurei no recém-inaugurado Sesc Bom
Retiro, em São Paulo, com curadoria de Marcio Debellian, um dos roteiristas
de “Palavra (En)cantada”, premiado documentário de Helena Soldberg que
aborda a relação entre música e poesia no cancioneiro brasileiro. O projeto
revela as predileções literárias de alguns compositores.
A partir de uma (ingrata e difícil) lista de “Os Dez Mais”, o convidado
divaga sobre a magia da leitura, suas influências e referências.
Não acredito que alguém se torne um humano mais especial apenas por gostar
de ler. Mas ter uma “cultura literária” qualquer, por mais caótica e
despretensiosa que seja, no mínimo dá assunto ao cidadão, empresta
interesse, vivência e curiosidade às nossas vidas, rende boas prosas no bar
ou no Facebook (será?), traz alguma poesia ao nosso besta cotidiano (sim,
“Alguma Poesia”). Só por esse fugaz encantamento já terá valido se debruçar
algumas horas sobre algumas páginas ruminadas com espírito.
Fonte:
http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/158352_A+BIBLIOTECA+DO+T+REX