quinta-feira, 19 de julho de 2012

Literatura diminui barreiras entre catadoras de papelão e escritores


Projeto Severina Catadora – Em Pernambuco, catadoras de papelão fazem capas de livros, escritos por autores da cidade.
Artista plástica Lúcia Rosa (de preto) coordena projeto que ensina catadoras a produzir capas para os livros, escritos por autores da cidade (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
Artista plástica Lúcia Rosa coordena projeto que ensina catadoras a produzir capas de livros (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
“Entre um povo de raras leituras, como era o de sua aldeia, causava espanto e admiração aquela voracidade com que comprava e consumia livros e mais livros”. O trecho de Dom Quixote, obra de Miguel Cervantes, reflete a situação de milhares de brasileiros, que apaixonados por literatura, lutam pela arte e buscam disseminá-la, em uma luta que pode ser quixotesca, em um país onde o índice de leitura está abaixo do desejado. Durante os primeiros dias desta edição do Festival de Inverno de Garanhuns , no Agreste pernambucano, esta luta foi travada com sucesso, unindo catadoras de papelão da cidade e escritores do coletivo U-Carbureto.
Ministrada pela artista plástica paulista Lúcia Rosa, do coletivo Dulcinéia Catadora, o projeto Severina Catadora realizou uma oficina com mulheres e homens da Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável Nova Vida (Asnov), no bairro da Cohab III. Lá, no espaço em que senhoras vendem o quilo de papelão recolhido por apenas R$ 0,18, livros nasceram, e a arte das palavras fincou raízes, espalhando esperança e criatividade.


Para a presidente da Asnov, a catadora Núbia Bezerra, o lixo começa a dar lugar aos sonhos. “Estamos pegando novos conhecimentos, agora um filho ou um vizinho pode ter acesso a um trabalho desses. Minha filha, por exemplo, escreve uns versos, e está animada para participar de algo parecido”, comentou, contente. A amiga Maria Aparecida Santiago concorda, e adiciona: “Os outros podem até desistir depois disso, mas eu quero continuar. Esses livros podem ir para as escolas, para todo canto. A gente pode colocar na praça para vender, vai ser um sucesso!”
'Eloísa Cantonera', de Buenos Aires, inspirou projeto do FIG (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
'Eloísa Cantonera', de Buenos Aires, inspirou projeto do FIG (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
A iniciativa é prova de que algumas interferências em universos distintos podem dar bons frutos. Inspirado no “Eloísa Cantonera” de Buenos Aires, que a artista conheceu durante a 27° Bienal de São Paulo, o “Dulcinéia Catadora” existe há cinco anos. Lúcia Rosa fala animada sobre os resultados que já observou: “Conseguimos coisas concretas, as pessoas vão desenvolvendo o olhar, a criatividade. Temos hoje um menino que é fotógrafo, muito talentoso. Outro dia, um rapaz me mandou um e-mail, agradecendo por tudo, e falando que estava cursando Relações Internacionais”.
É ela quem faz o contato inicial com os autores, que são convidados para escrever textos que serão vendidos com capas de papelão, produzidas pelos catadores. Entre os nomes que já colaboraram estão Marcelino Freire, Alice Ruiz, Glauco Matoso e Andrea del Fuego. Depois que a produção é finalizada, cada livro é vendido por um valor acessível, a R$ 7 ou R$ 10, e a renda é dividida entre catadores e escritores, dependendo do acordo realizado. O grupo também organiza os lançamentos das obras, que em São Paulo acontecem em redutos frequentados por autores, como a Mercearia São Pedro e a Praça Benedito Calixto. Em Garanhuns, o lançamento aconteceu na Praça da Palavra, e os livros produzidos pelas pernambucanas já estão esgotados. Os feitos em São Paulo ainda estão à venda na praça, e custam R$ 10.
Não só as catadoras passam por alterações em seu universo e modo de percepção. Para Helder Herik, um dos escritores do coletivo U-Carbureto e organizador da antologia local, o grupo também sentiu a força do encontro: “Encaro isso como um aprendizado, sobretudo por ver essas mulheres. Elas pegam o nosso lixo, e o transformam em arte. E também porque em momento nenhum se mostraram fragilizadas, mesmo que algumas pessoas da sociedade não pareçam ter paciência com esse trabalho de formiguinha delas, e não as perceba como pessoas”.
Helder Herik organizou os textos publicados (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
Helder Herik organizou os textos publicados (Foto: Gabriela Alcântara | G1)
O encontro entre os dois universos foi tão emocionante que, dos dois escritores convidados para fazer textos especialmente para o projeto, um saiu da Asnov já criando a obra. “O Andre Luiz de Castro saiu da cooperativa na quarta-feira e na quinta o texto já estava pronto”, comentou Helder. Na obra resultante, um trecho resume bem a força da iniciativa: “Depois de imprensá-lo em papelão, esse livro é uma pólvora”.
Fonte: G1 Pernambuco | Gabriela Alcântara