terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ter livros em casa ou não tê-los: eis o dilema - por Cunha e Silva Filho






Foto meramente ilustrativa
Não são boas as notícias sobre o destino dos livros que possuímos. Algumas delas falam em brigas de casal por causa de excesso de livros num dos cômodos, ou nas dependências de empregada, já que estas estão sumidas do poder econômico da classe média ou média baixa ou sei lá em que se transformou a designação da pirâmide social, hoje preferindo rotulações que me soam um tanto cabalísticas ou mesmo esotéricas: classes a, b, c, d, e ... Nunca vi país mais chegado à virtual divisão de estratos sociais quanto o nosso. Mas, leitor, esse não é bem o ponto central desta crônica. O que quero pôr em discussão, ou senão em forma de monólogo, ou no mínimo num incerto diálogo, é o destino, triste sina, dos livros de que dispomos em nosso “Home, home, sweet home”, ou no “My home is my castle,” como preferem os ingleses muito inclinados aos jardins tão bem cuidados e de fazer inveja.
Sei de um amigo que já em parte se separou dos seus amados volumes adquiridos em tantos anos de leitor compulsivo; sei de outro que está destinando parte de sua biblioteca a uma biblioteca pública; sei de outro que, aos poucos, está doando livros que já foram lidos e, muitas vezes, relidos. Sei de outros que andam também com a mesma ideia de ter que se separar de seus bem-queridos livros adquiridos em longos anos em volumes que chegaram a compor uma modesta biblioteca privada. 
Uma vez, estava numa velha livraria de sebo quando um senhor magrinho, baixinho, chegou-se até ao livreiro e lhe perguntou se queria comprar algumas coleções inteiras de grandes autores da literatura universal. Este mesmo senhor, dirigindo-se também a mim, perguntou se eu também queria comprar-lhe alguns volumes e foi direto me passando, numa espécie de cartão de visita, o endereço e o telefone. Guardei o cartão por algum tempo, contudo, não sei como, terminei perdendo o cartão e a possibilidade de ir procurar aquele senhor magrinho com cara de leitor voraz.

Dessa experiência com notícias sobre descarte de livros, aprendi uma lição: a pessoa que consegue ter uma média ou grande biblioteca, em determinada época do balanço da vida, resolve livrar-se dos próprios livros. As razões são múltiplas e, muitas vezes, inconfessáveis: tédio da vida, sentimento de quem acha que morte está se aproximando com o peso dos anos, tirar algum ganho por necessidade num tempo em que a aposentadoria ficou corroída com os anos, certeza de que não terá mais tempo e paciência para reler aquela montanha de livros, motivo de mudança de uma casa para um apartamento ou para uma casa menor, onde não haverá espaço suficiente para caber tantos livros.
No meu caso, me situo numa experiência diferente e talvez única. Muitos livros que tinha, assim como coleções de jornais, de revistas de material, de anotações, ou melhor arquivos com centenas de folhas, livros didáticos que gostaria de ter comigo para sempre, com tantas mudanças que fiz, foram se perdendo para enorme tristeza minha. Se existe algo que me entristece é perder um livro de que gosto. Uma vez – se é que não estou me repetindo -, fiz uma crônica, dolorosa crônica lamentando a perda de um livro. O mesmo vale para coleções de suplementos literários, como os do JB, do Globo, da Folha de São Paulo, da coleção de revistas do Piauí, da coleção do Jornal de Letras dos irmãos Condé, da revista Forum, excelente publicação americana para professores de inglês, da coleção da revista Contato, da Cesgranrio, da coleção Plain Truth, nos áureos tempos do Pastor americano Armstrong, que lia a fim de melhorar meu inglês, de obras de autores piauienses, da coleção de artigos de meu pai publicados durante décadas em alguns jornais do Piauí, de coleção de artigos meus antigos remontando a 1963, muitos exemplares dos quais perdi pela vida afora.
O fato é que fui perdendo muitos livros, mas, aos poucos, sentindo as dores em doses menores, porque o mais lamentável é perder todos os livros de um só vez, assim como é profunda a dor de perder os originais de um livro que nos deu tanto trabalho, canseira - e por que não! – alegria de escrever. Uma vez, o contista João Antônio (1937-1996), tendo escrito Malagueta, Perus e Bacanaço (Civilização Brasileira, 1963), considerada sua obra-prima, teve a desdita de perder os originais que foram queimados em um incêndio. O pobre e talentoso contista teve que reescrevê-lo todinho, aproveitando o espaço de um biblioteca em São Paulo. Foi um milagre o havê-lo reescrito. Como, pergunto eu, teria sido mesmo a primeira versão? Não é possível que a recomposição tenha sido cem por cento a mesma. Já me aconteceu de haver escrito um texto longo no computador e, de repente, or deslize meu de não o ter salvo, perdê-lo, sendo forçado a refazê-lo de forma diferente e, a meu ver, inferior, à versão primeira.
Para quem ama na verdade os livros, separar-se deles é uma tormento, uma realidade que passa a ser angustiante, sentimento de desvalia, de carência, de desgosto, de abandono. A vida é mesmo cheia de perdas constantes. Os livros são como pessoas queridas, animais domésticos que estimamos e tratamos como se fossem um ser humano. Ao perdermos livros, perdemos parte de nosso universo afetivo, o que nos deixa num vazio inconsolável, sobretudo quando decididamente sabemos que não mais voltarão para nós.
Assim, venho me desfazendo, por mera falta de espaço, de alguns velhos livros, companheiros que me têm acompanhado por longos anos. Invejo, pois, aqueles que têm à disposição um lugar separado em que possam ser guardados a salvo do descarte. Sei que sou mesquinho quando não pretendo me desfazer de algumas obras que foram compradas com sacrifício, que foram encontradas por sorte em sebos. Triste e sombria cena presenciarmos o desmonte de uma vetusta biblioteca, cujos volumes vão parar numa lixeira, enxotados que foram por herdeiros que não amam os livros e nem se interessam por determinada área do conhecimento artístico, literário, científico. 
Sabemos igualmente que não lemos todos os livros que temos conosco. Todavia, eles estão lá nas prateleiras, ao nosso alcance, para qualquer dia ser objeto de nossa leitura. Muita gente pensa que quem tem uma grande biblioteca leu todos os volumes ali contidos. Já ouvi alguém afirmar que o prazer do bibliófilo é possuir seus livros, pouco lhe importa se não ler todos eles. Cada livro tem o seu momento de leitura. Poderá ser hoje, amanhã, daqui a anos. O deleite é tê-los lá nas inúmeras estantes, prontos para serem buscados, escolhidos, lidos e admirados.
Os livros, na biblioteca, explicam gostos e preferências de seus donos. São pistas indicativas da formação de um indivíduo. Em silêncio, dizem muito de quem os coleciona. Da mesma forma, os livros iluminam aspectos da biografia de seus donos. Por isso, é tão traumático para alguém ter que se separar de seus livros. Ninguém, em sã consciência, estimaria perder um único livro de seu acervo particular. Se isso acontece é porque alguma coisa anda errada entre os moradores de uma casa, ou apartamento, onde existe uma biblioteca. A angústia do possuidor de uma biblioteca é a incerteza que nele paira sobre o destino que terão seus livros quando não mais estiver entre os mortais.
Enquanto puder, leitor, preserve os seus livros, lendo-os, amando-os, cuidando bem deles, e, quando não mais o puder, doe-os ou venda-os a quem deles precisa, seja uma pessoa física, seja um instituição privada ou publica. Se possível, faça um testamento expressando claramente a quem destinará seus livros, com quem ficará ou o que será feito deles na forma legal. Que, enfim, seus livros, sua biblioteca tenham um tratamento à altura de sua importância para a cultura do saber democraticamente divulgado e compartilhado. Só assim a angústia dos bibliófilos talvez fique mais aplacada ante a dor da separação.