POR EMILIA GALLEGO ALFONSO
Doutora em ciências pedagógicas, Emilia Gallego nasceu em Cuba e vive em Havana. É poeta, ensaísta e professora. Ganhou vários prêmios com seus livros de poesia Para un niño travieso, Y dice una mariposa e Sol sin prisa. Recebeu a medalha “Por la Educación” e é presidente do Comitê Cubano do IBBY.
Disponível em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=50
Introdução
Em seu livro A bagagem do viajante, José Saramago diz:
“Ao
contrario do que afirmam os ingénuos (todos o somos um vez por outra),
não é basta dizer a verdade. De pouco ela servirá ao trato das pessoas
se não for crível, e talvez até devesse ser essa a sua primeira
qualidade. A verdade é apenas meio caminho, a outra metade chama-se
credibilidade. Por isso há mentiras que passam por verdades, e verdades
que são tidas por mentiras.”1
Se
aceitamos essa reflexão como verdadeira e, de acordo tácito, a
liberarmos da dúvida pertinente que o próprio Saramago propõe, bem que
poderia servir como recomendação a andar de olhos bem abertos e submeter
tudo que se lê, neste mundo, a um reflexivo, criativo e então pessoal e
enriquecedor processo de apreensão inteligente e emocional, ou seja, a
uma leitura crítica. E acrescentar: Essa leitura crítica deve começar em
casa.
Num
mundo globalizado, onde qualquer ato pode ser qualificado como cultural
e confundir-se e dimensionar-se com essa rubrica por todas as vias
possíveis e em todas as latitudes, o maior risco da cultura é,
precisamente, o despojamento muito sútil e encoberto de sua identidade
que é a essência humana.
Quando
o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), em 1994, decidiu
eliminar todas as barreiras tarifárias do produto cultural importado e
suprimir qualquer tipo de subsídio ao produto cultural autóctono, apesar
do nobre propósito por trás da medida, o resultado prático foi o
abandono à implacável lei da oferta e da procura os costumes, o
pensamento científico, as tradições, as crenças, as histórias, o livre
exercício livre de ideias, a memória, os valores, a cultura: o que foi, o
que é, o que será.
Reduzida
a mercadoria que carece de sentido sem o mercado, negando-se todo valor
ao que não tem preço, o sagrado se impregnou de egoísmo e ganância. O
peso específico que a cultura tem hoje na balança de pagamentos,
superando muitas vezes o valor das importações e exportações de matérias
primas, tem contribuído para aprofundar ainda mais o abismo entre os
proprietários da riqueza e os despossuídos.
Os
chamados valores intangíveis já não são tantos e, se não fosse trágico,
seria motivo de alegria, pelo reconhecimento e compreensão ainda que
tardios, que uma pintura de Van Gogh, morto de solidão e miséria, seja
adquirida por um valor entre 15 ou 20 milhões de dólares e passe a
decorar os salões dos proprietários das grandes empresas que com isso se
tornam “artísticos”. Os mesmos salões onde, descuidadamente, algum
convidado entediado joga as cinzas de seu charuto na mão dissecada de um
gorila africano.
O desenvolvimento
humano a que aspiramos é aquele que, realizando-se como uma cultura na
cultura, se expresse e traduza em qualidade de vida. É uma afronta à
humanidade a coexistência de realizações tais como a conquista do
cosmos, a alteração deliberada dos códigos genéticos e a manipulação da
realidade virtual, com 800 milhões de seres humanos famintos.
Mesmo
no meio dessa crise global aguda, este mundo – como observado por
Eduardo Galeano – nunca foi tão desigual nas oportunidades que oferece e
tão igualitário nos costumes que impõem. O desenvolvimento é concebido
como um processo multidimensional e integral de fatores econômicos,
sociais, jurídicos, éticos, estéticos, e a cultura como síntese
facilitadora e depurada dos melhores valores humanos e,
consequentemente, medida suprema da qualidade do desenvolvimento.
A
consciência crescente de que todos temos um sentimento de pertença à
uma mesma espécie humana estabelece a relação entre cultura e
desenvolvimento como centro das reflexões e, não somente como um tema de
conjuntura política, más como tema vital e estratégico que envolve
todos e tudo, pois nessa relação se discute e decide o destino da
espécie e de sua casa planetária.
Nessa
complexa relação cultura/desenvolvimento que concebemos como um
sistema, o chamado livro infantil e juvenil existe, em estreita relação
dialética não só com o sistema do livro ao qual pertence por definição,
mas também com outros fatores que diretamente condicionam e determinam a
existência cultural de qualquer sociedade – onde o livro atua como um
indicador preciso do desenvolvimento, pois é ao mesmo tempo fato e
espaço cultural.
Como
fato cultural, é uma força que resulta de outras forças, de caráter
social, econômico, político, que se confundem nesse meio privilegiado. O
livro conserva e traduz a multiplicidade das consciências individuais
em coletivas, expressando dessa forma todas as manifestações da
criatividade humana. Como espaço cultural é um promotor da leitura no
qual os leitores dialogam, confrontam, apreendem e assumem suas próprias
identidades individuais, a dos seus povos e a essencial da espécie, e
as dimensionam transformando assim o próprio fato cultural, o espaço de
sua realização e os próprios realizadores.
Por quê?
Então qualquer política do livro infantil que se conceba, além de
centrar-se nesse produto cultural, também o fará nos seus receptores e
na difusão do respeito de seus direitos à uma vida digna, integra e
verdadeiramente humana, na qual possam desenvolver ao máximo suas plenas
potencialidades e escolher livremente seu próprio destino.
De
tal forma, as políticas do livro infantil e juvenil estarão em melhores
condições para combater as políticas genocidas que criam abismos de
desigualdade social e aprofundam a pobreza de milhões de pessoas.
Pobreza que é terreno fértil para a proliferação da violência que, por
sua vez, gera racismo, discriminação, xenofobia, prostituição, drogas,
AIDS e, portanto, destrói a cultura porque enfrenta seus criadores.
Como?
Tanto
a elaboração dessa política como a sua implementação devem inspirar-se
em uma integração que combine esforços e vontades; e em cuja concepção e
implementação regional, nacional e local não faltem os conhecimentos e
as experiências que resumem, ao longo de sua trajetória, as organizações
internacionais como UNESCO e UNICEF, as intergovernamentais como o
CERLALC, as regionais como a OEI, as não-governamentais internacionais
como IBBY e IFLA, os respectivos ministérios de educação e cultura e as
fundações.
Esse espírito de arranjo democrático deveria levar a criação de:
• Uma equipe ou comissão
multidisciplinar onde estejam representados organismos internacionais,
intergovernamentais, ONGs, representantes de governos e pessoas de
prestígio e experiência comprovadas, selecionados entre funcionários e
especialistas da cultura e do ensino, escritores, designers,
ilustradores, editores, livreiros, bibliotecários, promotores,
pesquisadores, críticos, psicólogos, sociólogos, economistas. Suas
principais funções seriam acompanhar e assegurar a implementação da
política regional (ibero americana ou latino americana) e assessorar e
apoiar as políticas nacionais e locais (comunitárias, de bairro etc.).
• Um
fundo monetário para o desenvolvimento do livro infantil e juvenil, com
financiamento dos governos, organismos internacionais, grandes editoras
e outros envolvidos e que, geridos de maneira comprovadamente
transparente, se contraponham à dependência que tende a ser estabelecida
por doadores diretos. Esse fundo, distribuído de maneira colegiada e
equitativa pelo comitê multidisciplinar, pode ajudar a garantir a boa
utilização dos recursos humanos e materiais, e ajudar o efetivo
desenvolvimento das políticas em cada caso.
O comitê multidisciplinar deverá fazer pesquisas anteriores que lhe permitam informar-se cientificamente da:
• Realidade
sócio-económico-política na qual as políticas do livro infantil e
juvenil serão inseridas: conhecer o percentual de crianças sem acesso à
escolaridade básica; o percentual de analfabetismo real e funcional, e
quanto dele são mulheres (porque o adulto, principalmente as mulheres,
são intermediários na recepção de tais livros); a faixa de influência
das bibliotecas nacionais; o número de escolas e bibliotecas públicas,
bem como a quantidade e a qualidade de seus acervos, particularmente dos
que existem nas zonas rurais e nas comunidades indígenas. Especificar
as áreas mais propensas a desastres naturais e extinção ecológica, bem
como aquelas afetadas pela guerra em suas diversas formas: áreas de
conflito armado permanente ou em disputa de fronteira, e as sujeitas a
bloqueio econômico. Da mesma forma, as áreas mais empobrecidas das
grandes cidades sujeitas a, e geradoras de, todo tipo de violência,
forma não declarada de guerra que, assim como as outras formas abertas,
também tem seu preço sobre os mais vulneráveis: crianças e jovens.
• Realidade
da situação das políticas vigentes para o livro infantil e juvenil e a
promoção da leitura: quais são essas políticas, quem as promove, qual
seu alcance? Como se aplicam e até que ponto? Se relacionam entre si
regional, nacional, comunitariamente?
• Realidade
da situação da edição, da distribuição e da comercialização do livro
infantil e juvenil. O que é publicado? Como é distribuído? Como se
comercializa? São levadas em conta as necessidades e as possibilidades
de acesso dos mais despossuidos?
O
livro infantil e juvenil não escapa, na América Latina, do cenário de
enfraquecimento ou o desaparecimento das pequenas editoras, que não
podem concorrer com as multinacionais no livro. Não são mais os editores
quem decidem o que se publica, porque devem responder às políticas dos
donos do mercado do livro, e nem mesmo os escritores escrevem
livremente, porque sucumbem aos apelos transversais do livro infantil e
juvenil que os grandes grupos editoriais impõem a partir de uma temática
bem sucedida. As bibliotecas do nosso continente se inundam de livros
cada vez mais iguais em temáticas e estilos, em cujas capas a cor de
nossas culturas empalidece e dá lugar, em vez das nossas cores
autóctonas à hegemonia que vai se impondo como única.
Da
mesma forma que a humanidade, com poucas e conhecidas exceções,
endossou a necessidade de proteger crianças e jovens – a Convenção dos
Direitos da Criança comprova isso – as políticas do livro infantil e
juvenil devem considerar como objetivo principal proteger esse produto
único e transcendente de se tornar um produto de consumo.
Proteção
que não significa paternalismo, porque este enfraquece as capacidades,
limita as projeções e compromete a liberdade, mas protecão que garanta,
que não cerceie a ação criativa ou seleção dos autores e editores, que
possibilite às editoras nacionais publicar obras significativas, que
dimensionem as identidades de seus povos e preservem suas culturas. Em
suma, que contribuam para o fortalecimento da criatividade e do saber
como uma barreira efetiva frente ao poder economico.
Proteção
que não significa censurar por tratamento sexista ou racista obras que,
escritas em diferentes circunstâncias históricas, respondem à
concepções e valores que mesmo não compartilhados, não podem implicar
que um livro seja estigmatizado. Porque, como bem aponta Ana Maria
Machado: “O fato de que sejamos cientes da ideologia em um livro e
revelemos criticamente seus males, não deveria conduzir a um mundo onde
alguém ou algum grupo acredite ter o direito de silenciar outros, usando
qualquer método para consegui-lo, só porque eles não seguem exatamente a
mesma ideologia. Não seria o fim do mundo, mas certamente o final da
palavra escrita.”2
Se
trata de promover e fortalecer a leitura crítica, concebendo a
competência leitora, não como uma tarefa técnica, mas como um processo
social. Dessa forma, potencializar-se-ia o critério de alguns na escuta
de todos e vice-versa, alcançando, ao se valorar critérios e diferentes
posições, de forma consciente as opiniões pessoais profundas e
inteligentes que, transformadas em convicções, sustentem uma atitude
diante da vida.
Nesse
exercício democrático, a criança e o jovem devem ser ouvidos. Não só
porque não são poucas as verdades que eles têm a dizer – algumas
inverosímeis e que os adultos ignoram ou tentam esconder –, mas também e
principalmente porque esse “ouvir” contribui para o aprendizado de
respeito às opiniões dos outros, fundamento do entendimento e
compreensão entre os povos e base fundamental da paz.
Em
consequência disso, as políticas do livro infantil e juvenil devem
inspirar-se e dirigir-se à criação das condições necessárias e
suficientes para que esse livro possa se desenvolver como um verdadeiro
produto cultural, sem comprometer sua qualidade ou a sua função social.
Que sua publicação e existência se baseie na qualidade e garantia de
poder expressar as diferentes identidades que conformam o humano,
potencializando, assim, o livre acesso a sua leitura e suas
possibilidades de contribuir para a formação de um receptor crítico.
Para quê?
Independentemente das políticas implementadas, sempre haverá um lugar
para a pergunta: qual livro infantil e juvenil se deve privilegiar? E o
que devem ler os receptores que ocupam, em última instância, o foco e a
atenção dessas políticas?
Um
livro capaz de promover o diálogo fecundo com um leitor universal e
provocar reflexões sobre tantas e diferentes incógnitas vitais; um livro
como aquele Diário que escrito por uma adolescente judia em
uma situação limite – o apogeu do Holocausto – mantém viva a urgência de
seu apelo ao melhor do humano, a confiança de que apesar de tudo não
estamos sozinhos, sua força comovedora:
“(...)
‘Porque, no fundo, a juventude é mais solitária do que a velhice’. Essa
frase, lida não me lembro mais em que livro, ficou na minha cabeça,
pois acho justa.
É
possível que a nossa permanência aqui seja mais difícil para os mais
velhos que para os jovens? Não. Sem dúvida, isso não é verdade. As
pessoas mais velhas já têm opiniões formadas sobre tudo, e não hesitam
em suas ações diante da vida. Nós, os jovens, temos que redobrar nossos
esforços para manter as nossas opiniões, nessa época em que todo
idealismo foi esmagado e destruído, em que os homens revelam suas piores
taras, em que a verdade, o direito e Deus são colocados em questão.
Quem
achar que os mais velhos do Anexo enfrentam uma vida muito mais
difícil, certamente não entende até que ponto nos somos assaltados por
problemas... Problemas para os quais sejamos talvez muito jovens, mas
que nem por isso deixam de se impor para nós (...).
O
incrível é que eu não tenha ainda perdido todas as minhas esperanças,
pois parecem absurdas e irrealizáveis. No entanto, me prendo a elas,
apesar de tudo, porque ainda acredito na bondade inata do homem. É
absolutamente impossível para mim construir tudo em cima de morte,
miséria e confusão. Vejo o mundo transformado mais e mais em deserto;
ouço cada vez mais alto, o estrondo de um trovão que se aproxima e
anuncia provavelmente a nossa morte; compadeço-me da dor de milhões de
pessoas; porém, quando olho para o céu, penso que tudo vai mudar e que
tudo voltará a ser bom, e que mesmo estes dias cruéis chegarão ao fim, e
que todo mundo conhecerá novamente a ordem, o repouso e a paz. Na
espera disso tento colocar meus pensamentos ao abrigo e protege-los, na
esperança de que os tempos que estão por vir ainda possam ser
realizáveis.”3
A
tarefa parece complexa e difícil, mas uma vez que se começa a ler, nem
tanto. Basta o livro certo na hora certa; a criança, o jovem e o adulto
que possam lê-lo e partilhá-lo; o acesso livre e democrático à uma
leitura íntima e talvez discutida mais tarde, na procura por respostas
às infinitas perguntas que um livro proprõe. Porque um livro não é o
melhor, ou o mais recomendável quando diz toda a verdade, ou a verdade
de tudo, e nem mesmo uma. Ele é quando, na conversa que propõe, podemos
nos aproximar da verdade do outro, na busca de encontrar a nossa;
quando, mesmo que ele não nos prometa uma viagem bem sucedida e feliz
através do Vale de Cuzco, nos encoraje e instrumentalize para sobreviver
no deserto do Atacama.
Todo
livro propõe uma conversa e conversar é começar a conhecer. Conhecer é
um bom caminho para tolerar, tolerar é um passo a frente para
compreender e compreender é se colocar no lugar de nosso semelhante, e
se comover com sua dor ou alegria: a melhor forma de se aproximar e de
amá-lo. Amor, palavra relegada às novelas românticas, impensável nos
documentos oficiais ou nas políticas, e sem o qual é impossível aspirar
ao sentido mais importante de todos, o da responsabilidade.
Porque
a criança ou o jovem que conheça e entenda a extraordinária maravilha
que é e que contém o seu próprio corpo, lutará para protegê-lo das
drogas, da prostituição, da violência; aquele que se sentir parte da
natureza que o rodeia e protege, cuidará dela porque será como sua casa.
Senso
de responsabilidade que faz o ser humano sentir-se não mais do que um
sopro ‑ por que não? ‑ divino, e que esse sopro, como indivíduo único,
já existia na necessidade, o desejo e o amor de seus pais, e como ser
coletivo e social, já existia também na memória da primeira explosão do
Big Bang.
Leitura
crítica de nós mesmos e do mundo que nos compele a responder quem
somos, de onde viemos e para onde vamos, as questões que tanto preocupam
à identidade.
Exercício
do critério realizável apenas em liberdade, porque é inteligência,
emoção, julgamento, juízo e vontade humana, sem o qual o sentido da
responsabilidade que nos torna humanos em família, comunidade e natureza
como identidades comuns e, ao mesmo tempo, únicas na multiplicidade
infinita da diversidade, não teria sentido.
Sentido,
também da vida que alenta o livro e lhe dá significado, a tudo e a
todos os demais, na medida em que nos ajuda a assumir a vulnerabilidade
devastadora e insuportável da responsabilidade de saber que quando se
corta uma pequena e frágil flor, no recanto mais oculto da Amazônia, uma
estrela, talvez já desaparecida, sabe e estremece no limite da nebulosa
de Andrômeda.
TRADUÇÃO: DOLORES PRADES
1. José Saramago. “Não sabia que era preciso”. Em: A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 49.