Como os livreiros de Timbuktu conseguiram salvar manuscritos de 800 anos, que comprovam a existência de Idade Média documentada na África, em meio à desolação da guerra
João Loes
O livreiro e bibliotecário da cidade de Timbuktu Abdel Kader Haidara é um herói. No final de 2012, ao testemunhar o recrudescimento do conflito entre radicais islâmicos e o governo de seu país, o Mali, no noroeste da África, ele não esperou para ver qual destino teriam os raríssimos manuscritos que ele e outros livreiros guardavam caso uma guerra de fato eclodisse. Homem de ação, Haidara reuniu os colegas de profissão e, com apoio internacional, deu início a uma incrível operação de retirada preventiva da coleção, que conta com mais de 250 mil exemplares. Foram muitas viagens entre Timbuktu e Bamako, capital do país africano para onde as obras foram levadas, até que 80% do acervo estivessem a salvo. O trajeto de 700 quilômetros foi feito repetidamente em carros civis disfarçados de trasportadores de frutas e verduras abastecidos com gasolina custeada pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. No caso do resgate da biblioteca do Instituto Ahmed Baba, o trabalho foi tão profissional que nem o prefeito da cidade, Hallé Ousmani Cissé, soube da operação. Questionado em janeiro pelo jornal inglês “The Guardian” sobre o que ocorrera no Ahmed Baba, foi enfático. “Os manuscritos foram queimados.”
DESTRUIÇÃO
Nem tudo pôde ser salvo na biblioteca do Instituto Ahmed Baba, em Timbuktu
Não foram. Pelo menos não integralmente. Quando o prefeito dava essa declaração, boa parte dos tomos e pergaminhos de mais de meio milênio que versam sobre astronomia e medicina e guardam registros de música e poesia africanas já estava guardada em Bamako. O trabalho hercúleo e os riscos assumidos por Haidara e seus colegas se justificam. Nas obras salvas estão os registros dos últimos 800 anos de história da cidade de Timbuktu, entreposto comercial e cultural africano há quase um milênio e patrimônio mundial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 1988.
Além de valiosos documentos históricos, eles também têm grande importância por comprovarem que no continente africano a história dos povos locais também era registrada e difundida pela escrita, e não apenas de forma oral. “Reconheço que transportar manuscritos na mala de um carro não é o ideal”, diz José Luís Goldfarb, professor de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em políticas públicas de incentivo à leitura. “Mas, nessas horas, vale tudo para salvar um patrimônio rico como esse.”
HERÓI
Abdel Kader Haidara liderou a retirada dos títulos
Os livreiros de Timbuktu sabem disso. Acostumados com a história tumultuada do país, que coleciona guerras e conflitos, eles aprimoraram, através dos séculos, técnicas de resgate e proteção do inestimável acervo da cidade. Desde o final da colonização francesa no Mali, em 1960, ele não fica todo estocado em um lugar, mas sim dividido em cerca de 70 bibliotecas da região. Quando a situação se complica e a opção pelo resgate não existe mais, as maiores relíquias costumam ser embaladas e guardadas em caixotes de madeira selados e enterrados na areia do deserto. As cavernas também são usadas como esconderijo. Mas, com o conflito que se desenhou no final de 2012, a opção pela retirada do acervo da cidade pareceu mais sensata a muitos bibliotecários.
Isamel Didié, por exemplo, último descendente da dinastia Kati – há pelo menos 500 anos no Mali –, fugiu do país em direção à Europa no final de 2012 e levou consigo o que podia da Fondo Kati, que guardava mais de sete mil documentos sobre a presença islâmica na península ibérica. Depois de passar em fuga por França e Suíça, ele se fixou, temporariamente, em Jaén, no sul da Espanha. Suas preocupações, porém, continuam no Mali. “Não creio que temos perdido documentos”, diz, esperançoso. “Mas tivemos que espalhar em bibliotecas o que continuou por lá”, disse ao jornal espanhol “El País”.
Tanto esforço se justifica. “Estamos falando de um lugar onde a história de um povo se condensa”, afirma Goldfarb, da PUC-SP. “Quando uma biblioteca é destruída, é como se parte da nossa história e, portanto, de nós mesmos fosse eliminada.” Embora resgatados, os documentos que saíram de Timbuktu agora precisam ser cuidadosamente catalogados, trabalho que será feito com o apoio da Alemanha e da África do Sul. Como foram retirados às pressas, muitos arrancados das caixas que os protegiam, eles estão tão desorganizados que não se sabe ainda, precisamente, o que de fato foi salvo e o que foi perdido. A estimativa de 80% resgatados, porém, se mantém. “Foi um trabalho louvável, que mostra que a relação de um bibliotecário com seus livros extrapola a razão”, diz Goldfarb. “É um verdadeiro caso de amor.” Nos próximos meses, mais informações sobre a operação virão à tona, bem como detalhes do que de fato foi salvo e o que foi perdido. Até lá, fica a certeza de que o pior, felizmente, não aconteceu.
Fotos: Benoit Tessier/REUTERS e Divulgação