Expressão da cultura nordestina, cordel mexe com a rivalidade dos clubes, fala de Copa do Mundo e promove clássico imaginário entre Lampião e Satanás
Por Thiago Barbosa
Aracaju
Chegaram os festejos juninos. É hora de exaltar as tradições populares, de se deliciar com as comidas típicas do período, de apreciar a arte das quadrilhas, dançar forró e ler os versos de um bom Cordel. Nos 'arraiás' espelhados pelo Nordeste, sempre há uma banquinha expondo os cordéis e poetas populares declamando suas rimas para chamar a atenção do público.
Na Literatura de Cordel, uma das maiores expressões da cultura popular brasileira, os mais variados assuntos acabam se transformando em versos. E neste São João, o GLOBOESPORTE.COM pega carona na criatividade dos cordelistas e mostra como esses poetas retratam o futebol, paixão dos brasileiros, nos folhetos de Cordel.
Futebol no inferno
Futebol é um esporte tão apaixonante que já foi praticado até no inferno. Pelo menos no imaginário dos cordelistas. José Soares, conhecido como o poeta repórter, falecido no início da década de 80, criou um folheto que narrava um clássico inusitado, realizado 'nas profundas', entre o time de Satanás, os donos da casa, e a esquadra de Lampião, o Rei do Cangaço.
As divertidas estrofes contam que houve duas partidas, com uma vitória para cada lado. Precisava-se então de uma terceira, a do desempate.
"Lampião ganhou um turno
Satanás outro também
no Domingo que passou
empataram em cem a cem
agora melhor de três
vai ser Domingo que vem".
Satanás outro também
no Domingo que passou
empataram em cem a cem
agora melhor de três
vai ser Domingo que vem".
Eis a grande confusão. Os rivais, reconhecidos pela valentia e tirania, travaram um embate antecipado por causa da data do jogo e da escolha da arbitragem. A 'CBF do Inferno' teve que intervir no impasse.
"O jogo era quarta-feira
porém Lampião não quis
além disso ele só faz
o que lhe vem ao nariz
e por isso o pau cantou
na escolha do juiz.
porém Lampião não quis
além disso ele só faz
o que lhe vem ao nariz
e por isso o pau cantou
na escolha do juiz.
Porque satanás queria
que o juiz fosse Cancão
e essa escolha também
não agradou Lampião
que ficou mais irritado
do que cavalo do cão.
que o juiz fosse Cancão
e essa escolha também
não agradou Lampião
que ficou mais irritado
do que cavalo do cão.
A CBF do inferno
quis suspender o torneio
porém a rádio profundas
opinou para um sorteio
já dizem que na loteca
vai dar coluna do meio".
quis suspender o torneio
porém a rádio profundas
opinou para um sorteio
já dizem que na loteca
vai dar coluna do meio".
Assim como muitos jogadores do mundo real, os boleiros do inferno também possuem nomes estranhos, como mostra a escalação:
"O goleiro do inferno
chama-se Dr. Buçu
o beque central Peitica
o volante é Papacú
para ser o quarto zagueiro
estão procurando tú
chama-se Dr. Buçu
o beque central Peitica
o volante é Papacú
para ser o quarto zagueiro
estão procurando tú
O tripé de meio campo
tem o diabo Rabichola
o ponta direita é Bimba
na esquerda Caçarola
o armado é cão côxo
que é Côxo mais joga bola.
Vejam só a escalação
do time de Lampião
Curisco, Chapéu de couro
Maritaca e Capitão
Sucuri e Pé de Quenga
Tarraspado e Tira a Mão".
tem o diabo Rabichola
o ponta direita é Bimba
na esquerda Caçarola
o armado é cão côxo
que é Côxo mais joga bola.
Vejam só a escalação
do time de Lampião
Curisco, Chapéu de couro
Maritaca e Capitão
Sucuri e Pé de Quenga
Tarraspado e Tira a Mão".
'Futebol no Inferno' fez tanto sucesso nas páginas dos folhetos que ganhou musicalidade na voz e no pandeiro da dupla Caju & Castanha. Os emboladores gravaram em repente o 'clássico das profundas'.
- Uma outra dupla já havia gravado o Futebol no Inferno. Nosso produtor ouviu e sugeriu que gravássemos também, pois seria sucesso garantido. Dito e feito. Foi um dos discos que mais venderam e vendem até hoje. Onde quer que vamos o povo pede para cantar. Ai da gente se não cantar (risos). É legal porque todos adoram futebol e acham engraçada essa partida inusitada - disse Castanha ao GLOBOESPORTE.COM.
O futebol é um instrumento inesgotável de inspiração para os cordelistas. Boa parte deles usa do bom humor para tratar dos assuntos do mundo da bola. A própria dupla Caju & Castanha explorou bem a rivalidade dos times.
- Nós fizemos vários cordéis em forma de embolada, com desafio entre torcedores de times rivais. Teve Ba-Vi, Gre-Nal, Santa Cruz e Sport, Corinthians e São Paulo e vários outros. Sempre quando falamos sobre futebol a aceitação do públlico é boa - disse Castanha.
O mais conhecido do público é o de Corinthians e São Paulo, que reproduz uma discussão quente entre dois torcedores, cada um defendendo a sua bandeira.
"O Corinthians é da ralé
É um time de maloqueiro
Esse tal de 'Zé Povinho'
Picareta e trambiqueiro
Favelado, indigente,
Pé rapado e cachaceiro.
É um time de maloqueiro
Esse tal de 'Zé Povinho'
Picareta e trambiqueiro
Favelado, indigente,
Pé rapado e cachaceiro.
São paulo é refrigerado
Falta marcha e não me engano
Usa brinco de argola
Pois só vive rebolando
Não tem homem no São Paulo
E chamam um Corintiano".
Falta marcha e não me engano
Usa brinco de argola
Pois só vive rebolando
Não tem homem no São Paulo
E chamam um Corintiano".
Crítica social
Além do bom humor, os cordelistas retrataram também a crítica social na poesia popular. O racismo no futebol e a violência de algumas torcidas organizadas serviram de inspiração para os autores.
Um dos mais emblemáticos sobre a insegurança nas arquibancadas é o 'Torcida Organizada, Violência Anunciada', do cordelista radicado em Salvador Antônio Carlos de Oliveira Barreto. O folheto faz duras críticas aos que frequentam estádios de futebol para semear um comportamento violento.
"Manifestação de ódio
De torcedores rivais
Aos poucos tiram do estádio
Aqueles que prezam a paz.
Parece até que os fanáticos
Se transformam em animais!"
De torcedores rivais
Aos poucos tiram do estádio
Aqueles que prezam a paz.
Parece até que os fanáticos
Se transformam em animais!"
Em seguida, o autor dá bons exemplos nas estrofes de como deve ser o comportamento da torcida nos estádios.
"Devemos reconhecer
que a torcida organizada
tem o seu grande valor
quando conscientizada,
mas para isso é preciso
de gente civilizada.
que a torcida organizada
tem o seu grande valor
quando conscientizada,
mas para isso é preciso
de gente civilizada.
A torcida organizada
Também pode pressionar
À direção do seu time
Podendo então opinar.
Basta que todos aprendam
O verbo dialogar".
Também pode pressionar
À direção do seu time
Podendo então opinar.
Basta que todos aprendam
O verbo dialogar".
O caso policial que repercutiu em todo o Brasil, envolvendo Bruno, ex- goleiro do Flamengo, também ecoou nos folhetos de cordel. Nas estrofes, o cordelista Isael de Carvalho dá a sua versão sobre o fato ocorrido.
"Bruno com seus amigos
Em ato que traz repúdio
De forma vil e cruel
Matou Eliza Samudio
Como em filme de terror
Produzido num estúdio".
Em ato que traz repúdio
De forma vil e cruel
Matou Eliza Samudio
Como em filme de terror
Produzido num estúdio".
Copa em cordel
A Copa do Mundo também serviu de tema para a Literatura de Cordel. Vários poetas dedicaram suas rimas para falar do maior evento do futebol. Em 2006, J. Victtor fez um manual da copa, falando dos grupos e das chances de cada seleção, também com pitadas de bom humor.
"Com a Coréia do Sul,
a França tome cuidado:
dizem que um jogador
é todo falsificado,
mas não se sabe quem é
quando estão lado a lado".
a França tome cuidado:
dizem que um jogador
é todo falsificado,
mas não se sabe quem é
quando estão lado a lado".
Manoel D'Almeida Filho, um dos maiores cordelistas brasileiros, escreveu um folheto em homenagem ao Tri no México. Mais recentemente, um selecionado de poetas populares produziu um cordel coletivo que conta a história das Copas do Mundo. Cada poeta escreveu sobre uma edição do Mundial.
Um dos autores foi o cordelista e pesquisador Marco Haurélio, que tratou sobre o pentacampeonato do Brasil na Copa do Mundo de 2002, na Coréia e no Japão.
- No capítulo da Copa de 2002 preferi usar um tom mais crítico. Geralmente os cordéis sobre futebol se enquadram no estilo circunstancial, tem prazo de validade curto, pois retratam assuntos da atualidade. À exceção desses cômicos, que também fazem sucesso - disse o poeta.
Com humor, crítica social ou boa dose de história, os cordelistas mostram que são craques nos versos e batem um bolão no quesito criatividade. Em cada folheto criado, marcam um gol de placa e provam que Cordel e Futebol sempre podem fazer uma tabelinha de qualidade.
Fonte: Globo Esporte (site)
Nota do blog: Esta matéria, assinada pelo jornalista sergipano Thiago Barbosa, foi destaque, no sábado na página nacional do Globo Esporte.