Outro dia fui à biblioteca devolver um livro. Era
um compêndio de psiquiatria enorme e muito pesado, meus braços já estavam
ficando moles de carregá-lo. Quando me encostei ao balcão para devolvê-lo
encontrei um bibliotecário que devia contar com um pouco mais de 60 anos. Era
um senhor de olhos azuis que brilhavam, mas notei que o brilho não era por
causa da cor. Eram dois olhos contornados por uma rede de pequenas fendas, umas
paralelas, outras entrecruzadas. Sobre seu nariz pousava uns óculos de aros
escuros com o fio de silicone envolvendo a nuca do bibliotecário. Lembrei que
quando comecei a usar óculos, eu queria usar a cordinha, mas alguém me disse:
“isso é coisa de velho!”. Achava o máximo deixar os óculos caídos despretensiosamente
sobre o peito. Hoje penso que isso não é coisa de velho, é coisa de quem não
pode ficar longe da possibilidade de ver o mundo pelo avesso, com mais nitidez.
Eu estava falando do brilho dos olhos dele. Então, não vinha do azul, nem da
juventude. O brilho vinha de uma gritante curiosidade pelo saber. Quando eu
cheguei ele estava folheando “A história da loucura”, de Foucault. Havia uma
pilha de livros devolvidos e o bibliotecário, sábio que era, sempre os folheava
para saber cada vez mais. O brilho vinha de uma escancarada alegria. Ele me
perguntou: “Por que vai devolver o livro? Não gostou?”. Eu ri e disse que já
havia lido todo ele (mentira, pois como eu disse, era enorme). Então ele me
perguntou se eu já sabia a nova regra de devolução de livros na biblioteca:
“Agora, quando o aluno devolve o livro, a gente abre aleatoriamente e faz uma
pergunta. Tá preparada?”. Eu ri. Fui contagiada pelo bom humor daqueles
sulcados olhos risonhos. Imediatamente pensei que ele devia ser mesmo muito
feliz, pois tinha o melhor emprego do mundo. Antes que me chamem de alienada,
vou dizer o porquê de pensar isso. Não disse que ele tinha o melhor salário do
mundo, mas que tinha o melhor emprego do mundo. Todos os livros passam por suas
mãos e ele pode saber de muita coisa. Invejei o bibliotecário. Imaginei que ele
deve ser como aqueles enólogos (especialistas em vinho) que reconhecem um bom
livro pelo cheiro. Pensei que deve ser prazeroso folhear um livro antigo e ler
uma palavra com algum acento que já não se usa mais devido a um acordo
ortográfico. Também deve ser fantástico descobrir entre as folhas algum bilhete
esquecido, até mesmo uma traça curiosa, ávida por devorar livros, que tenha
sido cruelmente esmagada: um fóssil de traça. Até os espirros valem à pena.
Imaginei ainda aquele bibliotecário devolvendo, no final da tarde, aqueles
livros nas suas estantes de origem. Os livros vizinhos já estariam tristonhos
com a presença da ausência de seu companheiro de saber. Além de tudo, o
bibliotecário é uma espécie de médico de livros, pois quando eles voltam
machucados pelas mãos do aluno, despedaçando-se, o bibliotecário cuida deles,
cola suas feridas e os deixam uns dias em repouso. Alguns voltam tão machucados
que chegam a perder suas capas. O médico da biblioteca é um cirurgião plástico,
ele faz uma capa nova para seu paciente e deixa-o remoçado. Pensei que à noite,
todas as noites, deve haver festa quando as portas da biblioteca se fecham. Os
livros comemorando o retorno de seus velhos amigos. É preciso comemorar pelo
alívio que sentem ao saber que seu amigo não ficou eternamente perdido na casa
de algum aluno displicente ou larápio, e que não voltou mutilado ou aos
pedaços. Saí de lá aliviada, pois aquele livro tão pesado que já estava com a
devolução atrasada há mais de trinta dias, devia estar sendo esperado com
saudades em toda a estante de psiquiatria. Fiquei triste com a longa suspensão
que tomei, pois agora não poderei fazer empréstimo tão cedo, mas achei que,
diante do estrago causado, eu mereci a suspensão. Então os olhos faceiros e
brilhantes do bibliotecário me deram alento.
Campo Grande, 30 de maio de 2012.