*Por Alberto Manguel
Dizer que uma biblioteca é o repositório da memória de uma sociedade parece implicar que essa memória é algo que está distante no tempo, contemporâneo de Alexandria. A noção de que aquilo que preservamos do esquecimento pode ser tão recente como nossa infância ou a dos nossos avós nos escapa: preferimos pensar na história social como uma história antiga, velha como Matusalém. Em vez disso, as bibliotecas são os principais repositórios de nossa própria história e dão uma espécie de modesta imortalidade àquilo de que o passado deseja se apropriar. As bibliotecas transformam o antigo em contemporâneo. O lugar onde vivemos, as pessoas que vemos todos os dias, possuem histórias documentadas, intencional e involuntariamente, em toneladas de papel e tinta, em retratos e fotografias, em vozes gravadas, em papiro e rolos de cera e formatos eletrônicos. De uma biblioteca, pode-se dizer que não tem passado: tudo é presente ou, se preferirmos, tudo, inclusive este momento e este lugar em que nos encontramos, pertence a um passado no qual continuamos a existir.
Leitores crescem à sombra de censores e políticos
Talvez porque a história é um gênero literário, os grandes eventos da humanidade obedecem a leis de estilo e regras de sintaxe. Nossas tragédias e comédias têm heróis e vilões, respostas memoráveis e atos simbólicos. Com esmero artístico, ainda que nem sempre alcançado, construímos nossas sociedades e instituições e, ao longo do tempo, como ocorre em nossa memória com as obras literárias, nossas ações se resumem a uns poucos parágrafos notáveis. Assim acontece com nossas ambições e empreitadas, nossas fundações e destruições, nossos finais e começos. Nossas cidades, como nossos livros e obras de arte, entesouram significados que seus autores muitas vezes desconhecem e símbolos que, às vezes sem querer, são arcaicos e universais. A arquitetura de uma cidade simboliza sua história, e toda sociedade pode reclamar como seu o epitáfio que o arquiteto Wren escreveu para seu túmulo na catedral de Westminster: “Si monumentum requeris, circumspice” (“Se necessita de um monumento, olhe em volta”). Censores e políticos sabem disso e, em nossa época, tratam de substituir as bibliotecas, centro simbólico de uma sociedade letrada, pelos bancos, centro simbólico de uma sociedade gananciosa.
Desde o princípio, há mais de cinco milênios, os leitores cresceram à sombra de censores e políticos. Os primeiros creem, apesar dos incontáveis exemplos em contrário, que é possível anular o passado, cegar o presente, espoliar o futuro, aniquilar uma ideia uma vez expressada e, literalmente, apagar as palavras da memória comum. Os outros pensam que, deformando ou empobrecendo o ato da leitura, podem transformar os leitores em meros consumidores, debilitando seu poder de reflexão e seu juízo, condição necessária para consumir às cegas — assim, por um tempo, podem alcançar seus objetivos, embora não para sempre. Ambos os esforços são, ao fim e ao cabo, inúteis, mas demonstram a extraordinária fé que as autoridades possuem nos poderes do leitor: poder de escolher, de discutir, de questionar, de transformar, de recordar, de imaginar mundos melhores. O poder do leitor é imenso.
Nas sociedades do livro, a biblioteca, apesar de ficar em um lugar específico, assume para seus leitores uma geografia universal, já que a palavra escrita elimina fronteiras. Esta geografia sem fronteiras que a palavra escrita cria elege como centro o espaço da biblioteca. Os sete mares e os seis continentes confluem para as prateleiras destes edifícios icônicos, como também as constelações, os sóis e as trevas, imensidão que converge para a mesa de cada leitor e se resume a algumas linhas do texto que está lendo. A biblioteca universal não existe, a menos que toda biblioteca seja universal.
Desde sempre temos levado conosco nossas palavras — nossos livros, nossas bibliotecas — para nos acompanhar em nossas peregrinações. A Europa herdeira de Santo Isidoro (tanto de seus talentos intelectuais como de seu antissemitismo e demais preconceitos) projetou sua enorme sombra na aventura da conquista, que outros chamam invasão. Os soldados letrados e iletrados que emigraram para o novo continente levaram não só a mitologia europeia, das sereias e amazonas ao deus redentor que agoniza em uma cruz, mas também livros que eram memória e glosa de tais mitologias. É inquietante ler na crônica da primeira viagem de Colombo que, ao ver uns peixes-boi na costa da Guiné, ele acreditava ver “três sereias que saltaram bem alto no mar, mas”, completa fielmente o almirante, “não eram tão bonitas como as pintam”. Perturba também saber que era importante para esses homens trazer a terras desconhecidas os seus livros. Dom Pedro de Mendoza, fundador da minha Buenos Aires, trouxe consigo vários tomos. Para ele, contemporâneo de “Dom Quixote”, o mundo intelectual era um só, ou, em outras palavras, para ele em qualquer empreitada particular devia intervir o universal. Em todo caso, é importante reconhecer que seu impulso foi o de dar à nova cidade o fundamento de uma biblioteca transportada e se assegurar assim, por associação, uma espécie de imortalidade.
Livros acompanharam migrações humanas
Uma espécie de imortalidade: talvez seja este o impulso que nos leva, nas sociedades do livro, a ser nômades literários. Nossas eternas migrações são acompanhadas de leituras; entre os pertences que levamos para o exílio estão nossos livros; em nossas migrações transportamos animais, tendas, sementes, armas, mas também bibliotecas. Os reis egípcios criavam bibliotecas nas cidades mais longínquas. No século V a.C., o jovem Alcebíades, visitando um afastado povoado durante seus périplos pelas colônias gregas, deu um soco no nariz de um professor em cuja escola não encontrou um único exemplar de Homero, porque julgou que o homem havia faltado a seu dever intelectual. Alexandre, o Grande, talvez para não esquecer que os vencidos também têm voz, sempre levava a suas guerras um exemplar da “Ilíada”. No século X, Abdul Kassam Ismael, grão-vizir da Pérsia, para se sentir em casa em qualquer lugar, viajava sempre com sua biblioteca de 117 mil obras carregadas no lombo de 400 camelos treinados para marchar em ordem alfabética. Desde os primeiros tempos, os exilados se consolam com seus livros porque estes são, como queria Marguerite Yourcenar, sua pátria. Estes podem ser muitos ou apenas um. Próspero, em “A tempestade”, de Shakespeare, leva ao exílio sua biblioteca mágica, que é a fonte do seu poder. Vladimir Nabokov emigra de sua amada Rússia com o dicionário russo em seu bolso. Liao Yiwu foge da repressão na China com um pequeno exemplar de “O romance dos três reinos”, de Luo Guanzhong, em cujas margens escreve seus poemas. Toda biblioteca é herdeira destes heroicos leitores.
*Alberto Manguel é escritor e ensaísta nascido em Buenos Aires e naturalizado canadense, autor de “A biblioteca à noite” e “Os livros e os dias” (Companhia das Letras), entre outros títulos. Dia 21, às 19h, ele participará do projeto Leituras Imperdíveis, na Biblioteca Municipal de Botafogo (Rua Farani 53). O evento tem entrada franca.
Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/17/as-bibliotecas-nao-tem-passado-transformam-antigo-em-contemporaneo-475306.asp