A presente versão em quadrinhos do grande clássico de José Camelo de Melo Resende, o Romance do Pavão Misterioso, marcou uma experiência inovadora da Editora Prelúdio. A casa publicadora paulista, dirigida à época por Arlindo Pinto de Souza, foi responsável por dar uma nova roupagem à literatura de folhetos do Nordeste, publicando, desde 1952, livretos em tricromia e com formato maior, 13,5 x 18 cm. Quando ousou transpor clássicos do cordel para o formato das HQs, em fins da década de 1960, a Prelúdio se valeu do que tinha de melhor em seu time de ilustradores: os mestres Nico Rosso e Sérgio Lima. Este último recriou com seu traço peculiar, além do Pavão Misterioso, o soberbo folheto de gracejo de José Pacheco, A Chegada de Lampião no Inferno. O ítalo-brasileiro Rosso recriou grandes sucessos editoriais, como João Acaba-Mundo e a Serpente Negra, de Minelvino Francisco Silva, e Lampião, o Rei do Cangaço, de Antônio Teodoro dos Santos.
A iniciativa, à época, foi mal recebida pelo público e por estudiosos que ainda incorriam no equívoco de enxergar o cordel como uma manifestação folclórica antes de ser simplesmente literatura. Eram as mesma vozes que reclamavam das capas coloridas e da apresentação editorial diferenciada da Prelúdio, Mas as razões do insucesso passam longe das críticas. O hábito de se ler sempre os folhetos na vertical, de cima para baixo, pode ter gerado um desconforto no público tradicional, que não conseguiu acompanhar a distribuição dos quadrinhos na página. Os textos foram publicados na íntegra, com cada estrofe ilustrada por um quadro (exceção aos títulos ilustrados por Rosso, maiores que a média). Havia, porém, um problema: a inexistência de balões nos diálogos, o que comprometia o dinamismo que a linguagem das HQs exige. Outro desajuste era o nome – ou nomes – da coleção: Folclore em Quadrinhos ouHistórias do Norte em Quadrinhos. O termo cordel não era ainda popular entre o público.
A iniciativa, se não foi malograda, não cumpriu o que prometeu: as baixas vendagens abortaram a possibilidade de novos títulos serem lançados. Hoje, esse material inédito – que inclui quadrinizações de Vicente, o Rei dos Ladrões, de Manoel D’Almeida Filho, e de Vida e Testamento de Cancão de Fogo, de Leandro Gomes de Barros – faz parte do acervo da Luzeiro, editora que sucedeu a Prelúdio e coedita o presente trabalho.
O Novo Voo do Pavão Misterioso
A versão em quadrinhos do Pavão Misterioso foi garimpada por mim, Marco Haurélio, quando, em 2005, assumi o editorial da Luzeiro, a convite de seu diretor, Gregório Nicoló. Em 2006, durante uma visita do editor e poeta popular cearense Klévisson Viana a São Paulo, surgiu a ideia de trazer de volta esse clássico num formato mais arrojado. Klévisson sugeriu a inserção de balões e uma melhor distribuição dos quadrinhos, mais adequada aos novos tempos. Quadrinista premiado, duas vezes vencedor do HQ Mix, Klévisson sabia do que estava falando. Foi assim estabelecida uma parceria entre a paulista Luzeiro e a cearense Tupynanquim, dirigida por Klévisson. No mesmo período, chegavam, via e-mail, valiosas informações sobre a vida e a obra de José Camelo, colhidas pelo inquieto José Paulo Ribeiro, de Guarabira, PB, bancário aposentado e um dos maiores entusiastas do cordel que conheço. A valiosa foto do poeta, que ilustra o livro, foi encontrada por ele num dos muitos cartórios em que andou.
A possibilidade de ver o arquetípico Pavão alçando mais um voo – depois de ter servido de inspiração a tanta gente, da música ao teatro, da telenovela a outros gêneros literários – é o desafio de todos nós, editores e entusiastas. O leitor tradicional do cordel e os amantes das HQs têm a agora a oportunidade de guardar para sempre um tesouro tão valioso quanto o retrato da condessinha Creusa, que motivou a busca do jovem Evangelista. O Pavão atemporal, com ecos das Mil e Uma Noites e cheiro de ficção científica, voa agora para as estantes, movido pelo mesmo combustível que, há séculos, impulsiona a criação artística: o sonho.