Entre 1931 e 1986, os amigos trocaram 163 textos, entre cartas, bilhetes, telegramas, radiogramas e cartões-postais
Dois compadres mineiros, aproveitando os fortes laços de amizade, trocaram confidências por cartas que seriam apenas amenidades não fossem eles os escritores Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Cyro dos Anjos (1906-1994). Companheiros de geração, conheceram-se jovens no final da década de 1920, em Belo Horizonte, onde Drummond era editor do Diário de Minas, no qual Cyro, futuro autor de “O Amanuense Belmiro”, ingressava como redator.
Entre 1931 e 1986, os amigos trocaram 163 textos, entre cartas, bilhetes, telegramas, radiogramas e cartões-postais. Mais que novidades, compartilharam confissões pessoais e literárias que, por serem tão íntimas, nunca figuraram em nenhuma de suas obras. Essa é uma das principais atrações do livro “Cyro & Drummond”, compilação da correspondência entre os dois autores que a editora Globo lança na próxima semana, durante a Festa Literária Internacional de Paraty que vai homenagear justamente Drummond.
“As cartas revelam que Cyro foi o escritor com quem Drummond se sentiu mais à vontade para atravessar as barreiras da formalidade e da discrição”, observam, no prefácio, os organizadores Wander Melo Miranda e Roberto Said. “Essa amizade, calcada em afinidades profundas, cria condições especiais para que ambos se exponham francamente.”
De fato, chegam a surpreender algumas críticas reveladas por Drummond em relação aos seus pares. Em 1953, por exemplo, ao colocar o amigo a par dos acontecimentos literários do ano, o poeta, como bem notam os organizadores, estabelece linhas divisórias de suas preferências e, principalmente, de suas antipatias literárias. Escreveu Drummond: “O arraial das Letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia da Raquel, onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance do Zé Lins, que teve a habilidade de descobrir novos palavrões, ou acepções novas dos antigos, para ornamentar a sua prosa tão límpida (a publicação no Cruzeiro sairá expurgada)”, comenta o poeta, referindo-se à peça “Lampião”, publicada naquele ano por Rachel de Queiroz, e ao romance “Cangaceiros”, de José Lins do Rego.
Em seguida, ele detalha sua opinião: “O livro da Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe qualquer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião. O que me impressiona verdadeiramente, depois de tantos anos de residência no Rio e de conhecimento da turma, é o entusiasmo causado por qualquer produto daquela região, que faz noticiaristas e críticos avulsos babarem de gozo, enquanto o mais absoluto silêncio envolve uma obra do quilate do Romanceiro da Inconfidência, da Cecília (Meireles). É exato que, no caso desta, se trata de dama difícil, mas ao menos em homenagem à beleza, que é evidente até para os calhordas, eles deviam cair de queixo diante dela”.
Drummond não se voltava contra os colegas, mas criticava suas obras, exibindo uma coerência de opinião ao revelar sua visão estética e política do mundo. Na troca de cartas, é possível observar como Cyro dos Anjos comporta-se como discípulo do amigo poeta, mesmo quando passa uma temporada no México por conta das obrigações como diplomata. “Drummond serve-lhe como guia, modelo, uma espécie de interlocutor secreto pulsando nas tramas de sua escrita”, observam os organizadores.
CYRO & DRUMMOND
Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)
Editora: Globo (328 págs., R$ 49,90)
Cartas expõem humor e melancoliaO tom confessional domina a correspondência entre Cyro dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade, que revelam tanto seu cotidiano familiar como os acessos de melancolia e depressão. “Os eventos de natureza íntima superpõem-se aos fatos advindos das circunstâncias profissionais e políticas – as intrigas da vida literária, os meandros do favor no emprego público, as regras duras do jogo político, ao qual assistem como coadjuvantes ativos”, observam, no prefácio do livro “Cyro & Drummond”, os organizadores Wander Melo Miranda e Roberto Said.
Os textos revelam bom humor dos autores, especialmente de Drummond ao retratar o Brasil para o amigo distante. Confira na entrevista com os pesquisadores.
Agência Estado —A liberdade com que Drummond se expressa nas cartas é fruto da hierarquia estabelecida entre eles, ou seja, com Cyro comportando-se como aprendiz?
Wander Melo Miranda e Roberto Said. — Fica evidente que Cyro se comporta como discípulo do poeta, mas parece ser a intimidade e confiança entre ambos o que leva Drummond a manter um diálogo franco com o amigo – ambos são compadres, se tratam por compadre -, livre para opinar sem os compromissos ou impedimentos relativos ao serviço burocrático-institucional e à vida literária. São antes de tudo dois amigos conversando, dois amigos escritores é claro, e mineiros, sabendo até onde a confissão das vivências pessoais deve e pode chegar.
Wander Melo Miranda e Roberto Said. — Fica evidente que Cyro se comporta como discípulo do poeta, mas parece ser a intimidade e confiança entre ambos o que leva Drummond a manter um diálogo franco com o amigo – ambos são compadres, se tratam por compadre -, livre para opinar sem os compromissos ou impedimentos relativos ao serviço burocrático-institucional e à vida literária. São antes de tudo dois amigos conversando, dois amigos escritores é claro, e mineiros, sabendo até onde a confissão das vivências pessoais deve e pode chegar.
AE —As cartas, aliás, também são muito importantes para conhecermos o poeta, já que ele mantinha sua vida doméstica sob sigilo?
Miranda e Said — Na verdade, a vida doméstica, nas cartas, se mantém nos limites da rotina, do dia a dia, sem nada de excepcional. Nenhuma confissão mais delicada referente a problemas domésticos aparece nas cartas. Permanece até certa formalidade de Drummond, no caso. Cyro é mais aberto, se sente mais à vontade para falar de si e da família.
Miranda e Said — Na verdade, a vida doméstica, nas cartas, se mantém nos limites da rotina, do dia a dia, sem nada de excepcional. Nenhuma confissão mais delicada referente a problemas domésticos aparece nas cartas. Permanece até certa formalidade de Drummond, no caso. Cyro é mais aberto, se sente mais à vontade para falar de si e da família.
AE —Drummond já se referira de forma tão incisiva a lançamentos de seus pares, como fez com romances de Rachel de Queiroz e José Lins do Rego?
Miranda e Said —Não, com tanta franqueza ao exprimir suas opiniões em relação aos pares não existia nada publicado até então. É preciso destacar que em nenhum momento Drummond ataca pessoalmente os pares; a crítica, quando é feita, é feita aos livros, à atuação da pessoa como escritor, não à sua vida privada. Há uma coerência nas opiniões de Drummond ao revelar sua visão estética e política do mundo.
Miranda e Said —Não, com tanta franqueza ao exprimir suas opiniões em relação aos pares não existia nada publicado até então. É preciso destacar que em nenhum momento Drummond ataca pessoalmente os pares; a crítica, quando é feita, é feita aos livros, à atuação da pessoa como escritor, não à sua vida privada. Há uma coerência nas opiniões de Drummond ao revelar sua visão estética e política do mundo.
AE —Um dos aspectos mais importantes na troca de correspondência entre escritores está no registro do processo de criação. Nesse sentido, o que você considera mais notável nas cartas trocadas entre Drummond e Cyro?
Miranda e Said — A opção por uma literatura mais cosmopolita – mesmo tratando da província – distante dos excessos regionalistas, que Drummond abominava como tema e linguagem. Daí sua insistência em relação ao Amanuense, de Cyro, romance urbano que foge aos padrões da época, e se revela uma reflexão aguda sobre viver e escrever, sobre a difícil relação entre vida e arte, sobre a posição do intelectual no Brasil. É interessante o modo como compartilham uma perspectiva paradoxal que alia ceticismo e fé na força da literatura.
Miranda e Said — A opção por uma literatura mais cosmopolita – mesmo tratando da província – distante dos excessos regionalistas, que Drummond abominava como tema e linguagem. Daí sua insistência em relação ao Amanuense, de Cyro, romance urbano que foge aos padrões da época, e se revela uma reflexão aguda sobre viver e escrever, sobre a difícil relação entre vida e arte, sobre a posição do intelectual no Brasil. É interessante o modo como compartilham uma perspectiva paradoxal que alia ceticismo e fé na força da literatura.
AE —Não seria exagero dizer que se podem ler as cartas como ficção, ancorada na realidade, é claro: expectativas, possibilidades de criação e publicação se abrem e se realizam – ou se frustram?
Mirando e Said —As cartas são o relato de um período crucial da vida brasileira, do ponto de vista da política mineira e suas articulações nacionais. Formam uma trama que se pode ler como uma narrativa – não de ficção, mas no sentido de uma poética dos dois escritores atravessada pelas vivências pessoais. Basta comparar com a correspondência entre Drummond e Mário, para se notar o tom diferente, menos intelectualizado e programático, mais pessoal.
Mirando e Said —As cartas são o relato de um período crucial da vida brasileira, do ponto de vista da política mineira e suas articulações nacionais. Formam uma trama que se pode ler como uma narrativa – não de ficção, mas no sentido de uma poética dos dois escritores atravessada pelas vivências pessoais. Basta comparar com a correspondência entre Drummond e Mário, para se notar o tom diferente, menos intelectualizado e programático, mais pessoal.
Fonte: Agência Estado | Ubiratan Brasil
Fonte: http://blog.crb6.org.br/