No mundo das citações da internet, o argentino Jorge Luís Borges viu uma de suas frases ser repetida todas a vezes que alguém falava de uma biblioteca com carinho: “Sempre pensei que o paraíso pudesse ser assim como uma espécie de biblioteca .” Mas o irônico é que Borges lamentava tal fato, pois falava da sua cegueira e de como este paraíso lhe seria negado. Ainda assim, as bibliotecas são uma espécie de universo para o autor e talvez se sentisse como um dos paradoxos imaginou, ao encontrar tantos mundos dentro de um só mundo. Imagine como ele pensaria nas muitas bibliotecas que existem no mundo atual, diversos universos existindo paralelamente.
Diversos programas do governo brasileiro e da Biblioteca Nacional procuram incentivar a leitura trabalhando diretamente com as bibliotecas. É claro que existem várias realidades e dificuldades no Brasil. Para ajudar as iniciativas comunitárias foi fundada a Rede Brasileira de Biblioteca Comunitárias e para conhecer um pouco mais dessa iniciativa, conversamos com Abraão Antunes Silva, articulador da RBBC, e você lê aqui:
Aletria: Quem fundou a RBBC?
Abraão Antunes Silva: A RBBC surgiu em 2009 para a criação de um evento específico sobre Bibliotecas Comunitárias que pudesse ser planejado de forma democrática e fosse construtivo em sua realização. Além de mim, o outro criador da plataforma foi Jailton Lira, aluno da UNIRIO [hoje um dos editores da Revista Biblioo, no RJ]. Nossos incentivadores foram a profª Elisa Machado (UNIRIO) e o profº Geraldo Prado (IBICT). Outros articuladores de Bibliotecas Comunitárias, como o Antonio Carlos - de Duque de Caxias/RJ - e os integrantes da RELEITURA - Rede de Bibliotecas Comunitárias do Recife - além dos apoios de iniciativas do Terceiro Setor, como a Ashoka, o Instituto C&A e o IT3S, ajudaram a compor nossa história.
Aletria: Como funciona a RBBC e quais seus objetivos? Como é possível se filiar à RBBC?
Abraão Antunes Silva: Hoje a RBBC apresenta um rico acervo [audiovisual e escrito] sobre os ambientes e práticas de leitura das Bibliotecas Comunitárias no país, que pode servir como uma referência para todos os interessados no tema. Também faz parte de nosso trabalho o constante aviso sobre editais e eventuais oportunidades de formação para os agentes desses locais.
Recentemente conseguimos o apoio prévio do Instituto C&A, por meio do programa Prazer em Ler; em breve daremos maiores detalhamentos. Por enquanto, é certo que teremos a estrutura da Ação Educativa, uma ONG de trabalho reconhecido localizada no centro de São Paulo, onde poderemos oferecer cursos e oficinas ao longo do ano. A própria ONG já fez um curso de formação para tais lideranças em 2001 - ao reativar tal iniciativa, os conteúdos serão planejados da forma mais democrática possível, pela própria plataforma da rede.
Em 2012, no plano político, teremos como meta agregar esforços através de parcerias anteriormente iniciadas com outras redes de Bibliotecas Comunitárias [RELEITURA, de Recife, LITERASAMPA, de SP], a academia [USP, UNIRIO, UFPE], e algumas instâncias governamentais - visando a realização dos eventos citados, e do eventual estabelecimento de agendas locais e regionais para a discussão dos Planos Municipais e Estaduais de Leitura, que devem ser gestados nesse momento.
Para se filiar, é simples: basta acessar http://rbbconexoes.ning.com e preencher seu cadastro. A entrada é pré-aprovada para evitar a entrada de spammers.
Aletria: Como avalia a gestão atual da FBN, com Galeno Amorim? Quais perspectivas enxerga para o setor?
Abraão Antunes Silva: Tive a oportunidade de ver uma palestra dele onde estudo, na ECA/USP, e pude perceber que ele tem um entendimento do setor livreiro necessário ao gestor da FBN, algo que é notório verificar que nem sempre aconteceu. Até agora, Galeno me parece um profissional competente e com boas idéias e projetos em andamento para a área. Outros atores dentro da instituição que destacaria são Fabiano dos Santos, idealizador do projeto 'Agentes da Leitura', o qual deveríamos concentrar esforços para conjugar com o trabalho das Bibliotecas Comunitárias, e a profª Elisa Machado, uma das responsáveis pela criação e fomento da RBBC, hoje coordenadora do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas - que já lançou um amplo Cadastro Nacional de Bibliotecas, e agora organizou o primeiro edital descentralizado para compra de livros pelas bibliotecas públicas e comunitárias. Por fim, é bom observar que a perspectiva de integração de esforços entre o MinC e o MEC, visto no Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) deve ser fortalecida; há outras boas metas em relação ao livro e a leitura no Plano Nacional de Cultura, aliás. Em geral, se atingirmos a questão da leitura, além do livro, vejo um bom futuro para a área.
Aletria: É realista a meta do governo de termos uma biblioteca em cada cidade?
Abraão Antunes Silva: Há cidades em que os prefeitos simplesmente se negam a instalar uma Biblioteca... a luta contra a ignorância em um país que a cultivou por séculos não será apenas a responsabilidade de um governo. Talvez a meta de tal abertura até seja em breve alcançada, mas para além de bibliotecas abertas, elas devem também estar vivas; daí teremos sim uma meta mais difícil de ser alcançada - porém muito mais bela em sua realização (ainda que nunca plena).
Aletria: Um dos principais programas da BN é o 'Programa do Livro Popular' (com livros de até R$10,00). A primeira etapa já foi concluída. Quais os resultados que espera deste programa? Que tipo de conselho você daria para os responsáveis pelas bibliotecas na hora de selecionar esses títulos?
Abraão Antunes Silva: Analisei brevemente os cerca de 10000 livros listados no Programa, e pude perceber que há boas opções [ou ao menos razoáveis] para compra pelas Bibliotecas Comunitárias. (Quem quiser verificar essa listagem, pode acessar o blog da RBBC: http://rbbonexoes.blogpsot.com). Foi um programa importante no sentido de dar a oportunidade de agregar a idéia de 'Popular' ao 'Livro', tentando o trazer mais próximo para uma população que precisa também de um simbólico além dos itens econômicos aos quais já tem acesso. A opção por descentralizar as escolhas dos livros é outro ponto positivo; essas são minhas dicas para os que forem escolher os livros:
- Delimitar títulos a partir do público-alvo de seu ambiente e atentar a ‘BiblioDiversidade’. Para isso, deve-se observar faixa etária, e interesses específicos da comunidade, por exemplo.
- Dar preferência para livros de autores e/ou editoras reconhecidamente competentes. Visitar os sites das editoras para ver detalhes sobre as obras é recomendável.
- Tentar estabelecer uma forma democrática de escolha dos livros é algo a ser pensado. Sendo criativ@, há como acolher diversas sugestões para a compra mais adequada desse acervo.
Aletria: As bibliotecas comunitárias trabalham em geral com menos recursos. Neste caso, quais são as formas de aperfeiçoar a estrutura de uma biblioteca?
Abraão Antunes Silva: A questão da sustentabilidade talvez seja o grande problema dessas bibliotecas. Em São Paulo, existe o Programa VAI, que auxilia iniciativas culturais periféricas, dentre elas as ligadas a questão da leitura. Houve alguns editais descentralizados de apoio a Pontos de Leitura e Bibliotecas Comunitárias, esperamos que em breve isso possa ser feito em plano nacional. Essa deve ser de certa forma uma bandeira: a criação de financiamentos específicos para tais Bibliotecas, seja em âmbito municipal, estadual ou federal.
Mas, para que não se configure aqui uma relação de dependência - até porque essas iniciativas surgem mesmo pela própria lacuna do Estado quanto a questão da educação e da cultura nas periferias - parcerias com a própria comunidade devem ser planejadas e estruturadas a longo prazo. Hoje há muitas Bibliotecas que contam também com apoios via ONGs e algumas com projetos de universidades. Cada local deve traçar uma 'rede' de possíveis atores com os quais possa unir esforços, e o apoio - seja financeiro, por estrutura física ou de recursos humanos - deve ser assim discutido e acompanhado.
Aletria: No ano passado, houve um certo espanto no caso de uma editora que preferiu destruir seus livros do estoque a distribuí-los - o que reflete um mercado editorial que vem se crescendo em um ritmo mais rápido do que o hábito de leitura, e também uma distância entre as editoras e o leitor de determinadas regiões. O que a RBBC propõe às editoras brasileiras?
Abraão Antunes Silva: A propósito desse episódio, recomendo a leitura de um artigo da Raquel Cozer, colunista do Estadão [ http://blogs.estadao.com.br/a-biblioteca-de-raquel/ ]. Essa distância que você relata entre os editores e os leitores, não teria como analisá-la a fundo - aí indicaria outro bibliotecário (Lawrence Hallewell) autor de 'O Livro no Brasil'. Temos uma história de bons exemplos na área editorial como meu conterrâneo Monteiro Lobato, e outros como Jose Olympio e Ênio Silveira. Certo é: com uma política fomentadora das publicações, e uma comissão que preze pela qualidade e pertinência das obras para o seu público, programas como o Livro Popular mostram que pode ser possível envolver toda a cadeia do livro [produtiva, distributiva e mediadora] de uma maneira positiva.
Por outro lado, aqui na própria ECA/USP, por exemplo, foi deixada de lado o diálogo entre o Departamento de Biblioteconomia e o de Editoração para uma aproximação dos cursos - algo que desejo que ainda aconteça, em um plano mais amplo com áreas como a Educação. Existe assim um certo fosso entre as 'profissões do livro' (ou da leitura, em um quadro mais amplo) - um grande prejuízo para o entendimento da questão.
É claro que existe outro fosso entre as editoras e autores, ainda 'marginais', que são os que mais sentem isso na pele. Mas aos poucos aparecem várias Carolinas de Jesus, muitos Solanos por aí... é necessário que o Programa do Livro Popular, aliás, também tenha isso em prática: para além de democratizar o acesso ao produto livro, democratizar o acesso as suas páginas em branco, para a criação e impressão das histórias dos nossos populares. Em um país de 40.000 folhetos de cordel, não devemos imaginar que falta imaginação para preencher bem esse espaço. Há editoras hoje com essa proposta de popularizar as vozes, não vi todas nessa listagem do Livro Popular, mas algumas já estão presentes.
Aletria: Que outras ações paralelas à leitura são recomendáveis para atrair e formar leitores?
Abraão Antunes Silva: Todas possíveis! Geralmente, um ponto positivo é associar a fala à leitura [pois afinal, o texto é antes uma voz escrita] - e isso pode ocorrer com música, teatro, manifestações culturais diversas. Criar um calendário de atividades, baseado em um planejamento com fins a abarcar diferentes aspectos da leitura através de um diálogo com a realidade local é um ponto positivo em qualquer biblioteca. Infelizmente nem sempre temos o acompanhamento ou domínio pedagógico para a realização de novas atividades, mas o lado inventivo do brasileiro, todos sabemos, é do tamanho do universo de todas as fábulas. Sugiro que vocês visitem as partes de fotos e também de vídeos da RBBC; lá tem várias ações de apoio a leitura que podem ser adaptadas em suas bibliotecas.
Aletria: Na Europa, algumas livrarias e bibliotecas foram fechadas em decorrência da queda de índice de leitura, e talvez também pelo surgimento do e-book. Como as bibliotecas brasileiras vão enfrentar tal invasão digital?
Abraão Antunes Silva: Por um lado, esse quadro europeu e também norte-americano, por ora, difere do nosso; há expectativas de crescimento em relação às ações para a leitura e bibliotecas, ao que parece.
Com relação ao e-book: é preciso reconhecer a tecnologia como algo essencial para as bibliotecas; e aí é preciso pensar também em serviços / produtos digitais de apoio ao cotidiano desses ambientes, para que a questão da leitura eletrônica, quando fosse inserida, fosse melhor apropriada. Ainda são muitos os que ainda mal dominam o uso de e-mail, deveremos ter uma (boa) atualização através de uma formação sobre o tema para os envolvidos nas bibliotecas...
Não sei quanto tempo temos antes da popularização desses tablets e e-books - mas acredito que a leitura ainda andará junto ao escrito-papel, palco de tantas fantasias e idéias que ainda hoje fazem com que acreditemos em um futuro mais digno, se não pra nós, ao menos para o que será construído pelas nossas crianças, muitas vezes o foco de nossa atenção leitora. Importante é estimular a leitura do mundo...
Quem desejar entrar em contato com a RBBC poderá utilizar os seguintes endereços e telefones:
O logo da RBBC (não oficial ainda) é de autoria de Aimeê, Pedro e Midori, estudantes de Design na FAU/USP.