O escritor italiano Umberto Eco , em seu livro Segundo Diário Mínimo, traz uma coletânea de crônicas, muitas delas bem-humoradíssimas.
Uma parte da reunião de textos dedica-se ao que ele chama de “instruções de uso”, pequenos manuais que explicam como desempenhar miúdas e graúdas tarefas cotidianas, tais como:
- Como ser um índio
- Como apresentar um catálogo de arte
- Como organizar uma biblioteca pública
- Como tirar férias inteligentes
- Como substituir uma carteira de motorista roubada
- Como seguir instruções
- Como evitar doenças contagiosas
- Como viajar com um salmão
- Como fazer um inventário
- Como comprar gadgets
- Como ingressar na Ordem de Malta
- Como comer a bordo de um avião
- Como falar dos animais
- Como escrever uma introdução
- Como se apresentar na TV
- Como usar o bule maldito
- Como empregar o tempo
- Como usar o motorista de táxi
- Etc, etc, etc.
A lista, por si só, já é digna de riso.
Separei no entanto, um grupo de instruções que pode ser de interesse aos leitores deste blog:como organizar uma biblioteca pública.
Embora eu saiba que absolutamente todos os meus leitores são dotados de inteligência acima da média, não custa lembrar que se trata de um texto humorístico e, mais, originado no contexto da cultura italiana que, como todos sabem, é bem diferente da brasileira .
Isso entendido, vamos lá…
Como organizar uma biblioteca pública, por Umberto Eco
- Os catálogos devem ser divididos ao máximo: deve-se ter muito cuidado em separar o catálogo dos livros do das revistas, este do catálogo por assuntos e ainda os livros de aquisição recente dos livros de aquisição mais antiga. De preferência, a ortografia nos dois catálogos (aquisições antigas e recentes), deve ser diferente: por exemplo, nas aquisições recentes, farmacologia deve vir com f, e nas antigas com ph; Tcheco-Eslováquia deve vir com T nas aquisições recentes, e nas antigas sem T: Checo-Eslováquia.
- Os temas devem ser decididos pelo bibliotecário. Os livros não devem jamais trazer no colofão qualquer indicação acerca dos assuntos sob os quais devem ser classificados.
- As siglas devem ser instrascrevíveis e de preferência muitas, de modo que nunca reste a quem preencha a ficha espaço suficiente para incluir a última denominação, considerada irrelevante, e assim o encarregado possa sempre restituir-lhe a referida ficha para ser preenchida da maneira correta.
- O tempo entre o pedido e a entrega do livro deve ser sempre muito longo.
- Não é necessário entregar ao usuário mais de um livro de cada vez.
- Os livros entregues ao usuário porque foram solicitados por ficha não podem ser levados para a sala de consultas, isto é, a vida do consulente deve ser dividida em dois aspectos fundamentais: um dedicado à leitura e outro inteiramente votado à consulta. A biblioteca deve desencorajar a leitura cruzada de vários livros, porque pode provocar o estrabismo.
- Se possível, desaconselha-se totalmente a presença de máquinas fotocopiadoras; no entanto, se uma delas existir, o acesso a seu uso deve ser muito complexo e cansativo, o custo de cada cópia deve ser superior às papelarias e os limites reduzidos a duas ou três páginas copiadas por usuário.
- O bibliotecário deve sempre encarar o leitor como um inimigo, um vagabundo (senão, estaria trabalhando), um ladrão em potencial.
- A sala de consultas deve ser inatingível.
- Os empréstimos devem ser desencorajados.
- Os empréstimos entre bibliotecas deve ser impossível, ou pelo menos demandar muitos meses. O melhor, neste caso talvez seja assegurar a impossibilidade de vir a conhecer o que existe nas demais bibliotecas.
- Em consequência disso, os furtos devem ser facílimos.
- Os horários devem coincidir absolutamente com os horários de trabalho, discutidos previamente com os sindicatos: fechamento irrevogável aos sábados, aos domingos, às noites e na hora das refeições. O maior inimigo da biblioteca é o estudante que trabalha; o maior amigo é qualquer um que tenha uma biblioteca própria, e que portanto não tenha necessidade de vira à biblioteca e, ao morrer, legue a essa os livros que possuía.
- Não deve ser possível descansar no interior da biblioteca de modo algum, e em todo caso não deve ser possível descansar sequer do lado de fora da biblioteca sem antes ter devolvido todos os livros que se tinha pedido, de modo a ser obrigado a pedi-los novamente depois de tomar um café.
- Nunca deve ser possível reencontrar o mesmo livro no dia seguinte.
- Nunca deve ser possível saber quem pegou emprestado o livro que está faltando.
- De preferência, nada de banheiros.
- Idealmente, o usuário não deveria poder entrar na biblioteca; admitindo-se que entre, usufruindo obstinada e antipaticamente de um direito que lhe foi concedido com base nos princípios da Revolução Francesa, mas que ainda não foi assimilado pela sensibilidade coletiva, não deve e não deverá de modo algum, excetuando as rápidas travessias da sala de consulta, ter acesso à penetrália das estantes.
Nota reservada: Todo o pessoal lotado nas bibliotecas públicas deve ser portador de defeitos físicos, porque uma das coisas que se espera de um órgão público é que ofereça possibilidades de emprego aos cidadãos vítimas de deficiências (está presentemente em estudos a extensão deste requisito também ao Corpo de Bombeiros). O bibliotecário ideal deve ser, antes de mais nada, manco, a fim de estender o tempo que transcorre entre o recebimento da ficha preenchida, a descida aos subterrâneos e a volta com os livros pedidos. Para os servidores destinados a subir em escadas para atingir as prateleiras de altura superior a oito metros, recomenda-se que o braço que falta seja substituído por uma prótese em gancho, por questões de segurança. Os funcionários totalmente desprovidos de membros superiores devem pegar os livros pedidos com os dentes (disposição que tem como finalidade impedir a entrega aos leitores de columes maiores que o formato in-oitavo).
Sobre esse último ítem, é interessante observar que Umberto Eco escreveu um romance, O Nome da Rosa , em que um dos principais personagens era uma biblioteca – particularmente um livro – cujo responsável era um monge beneditino cego.
Uma evidente homenagem ao escritor argentino Jorge Luis Borges que, quando assumiu a direção da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, já não enxergava mais nada.
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Fonte livroseafins
Fonte: http://universidicas.blogspot.com.br